Como João Carlos Martins superou uma tragédia e renasceu como maestro
Hoje ele faz seu concerto de despedida dos pódios no Carnegie Hall, em Nova York


O universo da psicanálise, de Freud, associação livre é aquela técnica na qual o paciente diz o que lhe vem à cabeça a partir de um estímulo do terapeuta (calma, é uma matéria musical: logo logo você vai entender). Por exemplo, se eu colocar a palavra “popstar”, você poderá citar Lady Gaga, Beyoncé, Anitta… Grupo de pop/rock? Pode-se falar do inglês Coldplay ou da sensação coreana BTS. Mas se formos a um local apinhado de gente –por exemplo, o Viaduto do Chá, no centro de São Paulo– e falarmos a palavra “maestro”, certamente boa parte dos consultados irá responder “João Carlos Martins”.
João assumiu a regência aos 63 anos, idade na qual os líderes de orquestra (pelo menos os que importam) estão em grupos sinfônicos do primeiro escalão ou já pensam na aposentadoria. A razão de assumir o pódio, segundo ele, veio de um sonho com Eleazar de Carvalho (1912-1996), o maior regente brasileiro em todos os tempos. “Ele me disse: ‘Vem cá, vou te ensinar a reger’”, diz João em entrevista para a Billboard Brasil. E não duvide da habilidade, digamos, transcendental desse paulistano de 84 anos. Nascido numa família de espíritas, João testemunhou a mãe incorporar o compositor italiano Giuseppe Verdi (1813-1901) horas antes de partir para seus concertos e recitais de piano, instrumento que adotou antes de se tornar maestro. “Il concerto piú bello!”, anunciava Dona Alay, emulando a voz roufenha do italiano. E foi assim, inicialmente nas teclas do piano, que João conquistou as plateias eruditas.
O piano foi a primeira paixão musical de João Carlos Martins. O pai, José, português de Braga, comprou o instrumento com a esperança de que os filhos compartilhassem o sonho que ele próprio teve de abandonar — e que João Carlos e o irmão seguiram com louvor.
Como pianista, João Carlos especializou-se na obra do autor barroco Johann Sebastian Bach (1685-1790). Gravou praticamente tudo o que Bach criou para o piano, sempre com um toque diferenciado. A sua leitura para as “Variações Goldberg”, tornadas famosas pelo também pianista Glenn Gould (1932-1982), tem um andamento acelerado, quase pendendo para o rock’n’roll (não é à toa que João tinha, entre seus fãs, o tecladista inglês Keith Emerson, integrante do trio de rock progressivo Emerson, Lake & Palmer). O grupo de admiradores vai além do universo do rock. O artista plástico Salvador Dali (1904-1989), pai do surrealismo, não só era fã como lhe deu um conselho precioso. “Ele disse: ‘Diga a todos que você é o maior intérprete de Bach do mundo. Em 30 anos, eles vão acreditar. Faz 30 anos que digo que sou o maior pintor do mundo e tem quem acredite’.”
João Carlos Martins é um exemplo de como enfrentar –e muitas vezes superar– as adversidades. No caso, os inúmeros problemas que enfrentou para recuperar o movimento das mãos –e que gerou nada menos do que 30 operações. O calvário começou no ano de 1964, durante uma partida de futebol com jogadores da Portuguesa no Central Park, em Nova York. João levou um tombo e uma pedra entrou em seu braço direito. Semanas depois, numa consulta de rotina, descobriu que tinha atrofiado três dedos por conta do acidente. Passou por uma operação e fez fisioterapia, mas a impossibilidade de retomar a destreza dos primeiros anos – e as dores que sentia– o fez até cogitar o suicídio. Ele se dedicou então a executar obras que os principais compositores eruditos criaram para a mão esquerda. Tempos depois, um novo problema de saúde prejudicou também os movimentos dessa mão. Hoje, João toca auxiliado por uma espécie de luva biônica que, por mais que não recupere a destreza de tempos atrás, permite que coloque emoção em cada tecla.

A Bachiana Filarmônica debutou em 2004, na Sala São Paulo, e passou a se apresentar em importantes salas de concerto do país. “No início do grupo sinfônico, a gente tinha cinco movimentos. Os quatro movimentos das sinfonias e o movimento da bilheteria”, brinca João.
Carlos Eduardo Martins, produtor executivo da Fundação Bachiana (criada a partir do grupo sinfônico) lembra que o grupo passou a investir em concertos no interior de São Paulo e até em alguns rincões do país para suprir uma necessidade do público pelo universo erudito. “Certa vez, em Sobradinho, em Brasília, a gente fez uma récita na praça da cidade”, diz.
Em 2009, o Sesi (Serviço Social da Indústria) passou a apoiar os dois grupos criados por João, transformando-os na maior orquestra brasileira bancada pela iniciativa privada. “A ideia era democratizar a música clássica no Brasil”, resume Paulo Skaf, então presidente da entidade.
A orquestra gerou outro projeto, ainda mais ambicioso: a Fundação Bachiana, que mantém um núcleo de musicalização com o projeto de Inclusão Cultural “A Música Venceu”. “São oferecidas oficinas gratuitas de iniciação musical, canto coral, violino, viola, violoncelo e prática de orquestra de cordas. A fundação atende cerca de 500 alunos distribuídos em quatro polos da cidade de São Paulo (Centro, Paraisópolis, Bom Retiro e Jaraguá). O objetivo é oferecer o acesso à música clássica para crianças e adolescentes de todas as classes sociais”, diz Ezequiel Sieba, instrutor da Bachiana Filarmônica.
“A Orquestra Filarmônica Bachiana Sesi-SP tem um papel fundamental no desenvolvimento pedagógico dessas crianças e adolescentes. Através da participação nas aulas/concertos, os alunos têm a possibilidade de ouvir de perto a orquestra, perceber como funciona o seu instrumento e sua função dentro de um naipe e a união e o entrosamento com os outros naipes, aprender e vivenciar na prática a organização interna de uma orquestra profissional e ter a experiência de tocar e entender como funcionam os gestos de um maestro. Essas experiências poderão influenciar na escolha de uma carreira profissional na área musical”, prossegue o executivo Carlos Eduardo Martins.
Uma das qualidades da Bachiana é derrubar o muro que supostamente separa o cancioneiro erudito do popular. Embora inclua Beethoven, Bach e Brahms em seu repertório (e para a temporada 2025 está prevista a apresentação das sinfonias de Schumann), ela sempre dá espaço para as mais diferentes formas musicais. João Carlos, por exemplo, apresentou um concerto ao lado de Chitãozinho & Xororó –em 2011, na Sala São Paulo, durante a comemoração de quatro décadas da dupla.
“Nossa parceria com o maestro é de anos, resultado de muita admiração e carinho por um dos maiores artistas do Brasil e do mundo! É uma pessoa que faz conexões importantes e fortalece a ideia de que a música erudita pode se unir a diferentes estilos. Quando gravamos o audiovisual ‘Chitãozinho e Xororó 40 anos – Sinfônico’, foi uma união linda entre a música clássica e o sertanejo. Tivemos a honra de dividir esse projeto com o maestro, orquestra e equipe construindo desde o início com a gente. Foi muito especial”, diz Chitãozinho. “O maestro é um ícone da música, uma pessoa que soma e cria parcerias incríveis! Todas as vezes que a gente se encontra com esse grande amigo é um momento especial, de alegria, de aprendizado… Mas ter o maestro com a gente na comemoração de 40 anos, em 2011, em um show lotado na Sala São Paulo, mostrou que o sertanejo pode sair das arenas de rodeio e chegar a muitos lugares”’, completa Xororó.
“Lembro que no dia do concerto, o Xororó pediu a palavra antes de a récita começar e lembro que décadas atrás ele e o irmão desembarcaram na Estação da Luz, vindo de Astorga, no Paraná, trazendo apenas duas trouxinhas de roupa”, emociona-se Carlos Eduardo. “E agradeceram o maestro por estar realizando o sonho deles de cantar na Sala São Paulo.”
Compositores eruditos como Gabriel Prokofiev e Max Richter têm produzido encontros de música erudita com sonoridades eletrônicas. Com o mesmo propósito, Em 2009, João Carlos uniu-se ao DJ Anderson Noise para um experimento que misturava música erudita e eletrônica. A parceria rendeu uma récita na Sala São Paulo, com destaque para a releitura de “O Trenzinho do Caipira”, de Villa-Lobos. “Desde então, já dividimos o palco em cinco ocasiões, interpretando 17 clássicos da música erudita”, diz Noise.
A acessibilidade faz com que João Carlos Martins torne-se esse personagem na qual enxergamos a figura de um maestro – que no imaginário popular seriam tipos mal-humorados e dados a carraspanas. Com isso, torna-se até costumeiro em histórias da TV. No final de 2024, João Carlos Martins, estrelou um especial de Natal ao lado do cantor Péricles. O sambista interpretou um motorista de Uber que realizava o sonho de se tornar cantor ao se apresentar ao lado da Bachiana. Mesmo se recuperando de uma cirurgia, João participou da apresentação com bom humor. “Eu não podia dar um movimento em falso. Caso contrário, daria um grito que seria ouvido até nos lugares mais longes da cidade”, diverte-se o maestro.
No dia 9 de maio, João Carlos Martins sobe ao pódio do Carnegie Hall, em Nova York, para o seu concerto de despedida dos pódios. Ele rege um grupo sinfônico local em obras de Bach, Villa-Lobos, Tom Jobim, John Williams e Astor Piazzolla. Depois, amparado por luvas biônicas, passa a regência para Edson Beltrami e assume o piano. E por quê um homem como João Carlos Martins se entrega a essas tarefas e dificuldades com a disposição de um garoto? Quem sabe Freud, o sujeito sobre o qual falamos no primeiro parágrafo, explique.