Antes, durante e depois do play: o que faz um curador musical, segundo Zé Ricardo?
Zé uniu expertise e empatia em sua estreia na direção artística do The Town
Seu Chico era porteiro de um prédio na zona sul do Rio de Janeiro. Nas horas vagas, ele se dedicava à sua real paixão: cuidar de pássaros. Em especial, os canários, que fazia com que cantassem lindamente mesmo durante a muda (para quem não está familiarizado com esse termo, trata-se do período em que os animais trocam as penas).
Era tão famoso por essa habilidade que conseguiu uma bolsa de estudos para o filho numa das escolas particulares mais tradicionais do Rio de Janeiro. Como “pagamento”, cuidaria dos penosos do diretor da instituição.
Quatro décadas depois, o filho de seu Chico seguiu os passos do pai. Mas o fez à sua maneira. Diretor artístico do The Town, Zé Ricardo tem a missão de fazer com que os canários do festival, ou seja, os artistas, cantem cada vez mais alto e melhor.
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Mas antes de alçar voos como curador artístico dos palcos Sunset e Favela, do Rock in Rio, e de comandar o The Town, Zé teve que aprender a voar com as próprias asas.
O primeiro passo foi entrar no mercado de trabalho. Zé virou office boy de banco. A música, contudo, sempre foi companheira fiel. Ele, que arranhava um violão, juntou-se a um flautista para tocar bossa nova nos bares da cidade.
Foi em um dia de trabalho em 1984 que viu na televisão que aconteceria a edição de estreia do Rock in Rio. Decidiu que iria de qualquer jeito. E deu o tal jeito. Zé voltava a pé dos lugares para juntar o dinheiro da condução e comprar os ingressos que lhe dariam acesso ao festival. E foi mais um entre milhares de frequentadores que travaram uma ingrata batalha com o lamaçal da estreia da Cidade do Rock.
Essa, os pés dos incautos roqueiros perderam, é claro. E o par de tênis que usava virou um espólio de guerra. Mas foi ali que Zé percebeu que a música passaria a ser presença mais forte em sua vida.
‘Eu tinha um medo danado’
Nesse meio tempo, foi se destacando como cantor. Fez parte do Fibra de Vida, grupo que tinha o virtuoso Davi Moraes nas guitarras, lançou dois discos como artista solo e recriou “Tim Maia Racional”, o clássico disco do pai da soul music brasileira, em concorridas apresentações ao lado de Sandra Sá e Toni Garrido.
Mas foi sua atuação como curador artístico do Open Air, evento no Rio, que chamou a atenção de Roberta Medina, filha e braço direito do idealizador do Rock in Rio.
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Em 2007, Zé recebeu um telefonema da empresária, convidando-o para criar um palco no Rock in Rio Lisboa. O músico desembarcou em Portugal no dia seguinte e chegou sugerindo a primeira de suas “loucuras” (como gosta sempre de pontuar): queria mudar o nome e o conceito do palco secundário do evento.
Ele se chamaria Sunset, porque iniciava no momento em que o sol se punha. E, em vez de simplesmente juntar outros nomes para reforçar a escalação, sugeriu encontros entre artistas de linguagens e gerações diferentes. Roberta disse, então, que ele teria de pedir autorização para o seu pai –o dono do festival, afinal. “Eu tinha um medo danado. Ele vinha para um lado, e eu corria para o outro. Achava que ele era tipo o Mickey Mouse”, conta Zé.
O palco secundário não só rolou na edição de 2008 do festival lusitano como foi um sucesso imediato. O local, que costumava ficar vazio, passou a atrair público, porque reunia artistas portugueses de diferentes gêneros e gerações. E não é que o trabalho de Zé chamou a atenção justamente de quem ele fugia?
“Roberto me chamou na sala dele e disse, bem-humorado: ‘Você veio bagunçar o meu festival?’”, diverte-se. “Eu respondi que foi justamente para isso que havia sido chamado.”
O êxito lusitano o credenciou para bagunçar as estruturas do Rock in Rio também no país natal. Em 2011, o palco Sunset fez sua estreia brasileira na volta do Rock in Rio à cidade que lhe deu o nome, depois de uma década de hiato.
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Isso é The Town
Em novembro de 2022, Zé foi convidado a se tornar vice-presidente artístico dos festivais, comandando a primeira edição do The Town. Ele conta que o processo de curadoria costuma começar dois anos antes do evento. Ele mapeia nomes, faz convites com antecedência, mas deixa espaço para novos cantores e tendências musicais.
Em São Paulo, terra em que, como professa uma de suas canções-tema, “já acorda trabalhando”, o prazo foi reduzido para meses. A solução foi se aliar a um time de colaboradores para os palcos auxiliares –casos de Luis Justo, CEO do Rock in Rio, que montou o palco Skyline, e Claudio da Rocha Miranda Filho, para o New Dance Order.
“Foi insano. Tinha até medo de os ingressos não venderem”, conta. “Mas uma construção artística precisa de empatia, que resulta em uma diversidade cognitiva. É um mergulho de alma. E as pessoas acham que todo mundo pode ser curador de festival porque têm uma playlist no Spotify. Mas não é fácil”, explica.
O trabalho de Zé Ricardo vai além do conhecimento técnico. Ele acredita que seu tato para o cargo foi desenvolvido principalmente através de sua carreira como cantor.
“Estou em um lugar em que posso dizer para o festival que aquilo não é bom para o artista, e vice-versa. Os dois me escutam. Consigo conectá-los de uma forma que exista pertencimento de ambos os lados”, afirma. E consegue mesmo. No dia da entrevista, ele contou que havia ido ao ensaio de Jão, naquela noite iria jantar com IZA e, no dia seguinte, se encontraria com Luísa Sonza.
Zé também se lembra das inúmeras dificuldades que teve ao lado de Ludmilla para entregar o grandioso show show na última edição do Rock in Rio. A cantora o agradeceu emocionada no palco. São muitos “não”, vários “sim”, mas uma coisa é garantida: ele sempre fará questão de estar ao lado dos artistas desde o primeiro telefonema até as luzes se acenderem no palco.
Curador e passador de roupa
A missão de Zé começa nos meses anteriores ao festival. Mas isso não significa que seu trabalho tenha terminado quando os portões se abrem.
Durante o evento, ele sempre precisa resolver uma série de imprevistos, que vão desde quedas de luz entre trocas de shows, apresentações canceladas, cantores que perderam a voz, artistas que brigaram entre si, bandas que ficaram presas no trânsito e precisam ser resgatadas por escoltas ou helicópteros e até a demissão de funcionários –um deles se recusou a passar a roupa de uma das atrações, depois que a camareira passou mal.
Zé assumiu a função e dispensou a produtora. “Vou adicionar o cargo de passador de roupa no meu currículo”, brinca. Certa feita, o assessor de um roqueiro famoso (dica da redação: ele estava no Rock in Rio 1985) exigiu um carro importado. Caso contrário, o sujeito não pisaria no palco. Zé conseguiu o veículo, mas era branco –e o tal assessor disse que seu artista não entraria num carro daquela cor. A solução foi pintar o veículo de preto literalmente da noite para o dia.
Para se encontrar com Zé durante o festival, recomenda-se uma dose extra de paciência e preparo físico. Aqueles mesmos pés que perderam os tênis em 1985 caminham ininterruptamente pelo festival que ele imaginou do início ao fim.
Durante passeio feito pelas instalações do Autódromo de Interlagos no dia desta entrevista, ele dizia acreditar que, assim como ele e tantos outros se lembram com emoção da primeira edição do Rock in Rio, muitas pessoas vão se recordar da estreia do The Town.
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