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ANOHNI: da transição pessoal à revolução musical

ANOHNI: da transição pessoal à revolução musical

ANOHNI reflete sobre sua jornada única na música, cultura e identidade

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ANOHNI

“Não seja ridículo…” Fosse algum outro artista, esse tipo de resposta poderia ser encarado como uma bronca ou insulto. No caso de ANOHNI, soou mais um “você sabe muito bem sobre o que estou falando…” A pergunta? Se “Breaking”, o último single da cantora inglesa, fala sobre rompimento amoroso. É um blues triste, que faz versos como “meu jardim foi varrido, meu amor foi varrido”. Pensando bem, eu tinha de deixar de ser ridículo mesmo…

ANOHNI é um dos fenômenos mais impressionantes do universo pop em todos os tempos. Nascida há 53 anos no distrito de Chichester, Inglaterra, com o nome de Antony Hegarty, ela chama atenção, inicialmente, pelo alcance vocal. Vai do blues à música erudita, da soul music a baladas que devem ser ouvidas a uma distância segura de objetos afiados.

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“Eu aprendi a cantar de tanto escutar os cantores que amo”, diz ela, em entrevista à Billboard Brasil. “Então acho que intuitivamente aprendi algumas de suas habilidades.” Na lista dos preferidos estão Boy George –seu primeiro ídolo–, as divas Annie Lennox, Alison Moyet e Millie Jackson.

A cantora foi inicialmente criada na religião católica, mas desde os 7 anos percebeu que não se identificava com a formalidade da instituição, muito menos com o discurso. “Fui meio que expulsa do ninho quando tinha 7 ou 8 anos. Era óbvio que eu era transgênero e, como tal, não havia lugar para mim na mesa”, declarou à revista americana “Fader”. “Sempre fui muito grata por minha identidade porque ela me forçou a olhar para minha vida de uma maneira diferente à qual eu estava acostumada.”

Em 1981, ANOHNI e a família mudaram para os Estados Unidos, mais especificamente, em San Francisco. Ela passou a estudar artes e colecionar discos compulsivamente. Nove anos depois, outra mudança: dessa vez, foi estudar teatro experimental na Universidade de Nova York.

Ali, conheceu um de seus ídolos: Marsha P. Johnson, uma das principais vozes dos direitos LGBTQIA+. A jovem beijou a mão de Marsha e sentiu então que tinha encontrado sua família. Seis dias depois, o corpo de Marsha foi encontrado boiando no Rio Hudson, um crime que até hoje não foi solucionado. Antony and the Johnsons, projeto no qual iniciou sua carreira musical, é uma homenagem à sua musa.

Uma conversa com ANOHNI não é exatamente um momento tranquilo de pergunta e resposta. Às vezes, basta uma observação para ela discorrer a teoria com a qual está trabalhando no momento. Quer um exemplo? Falei de suas influências de soul music, expressas em “My Back Was a Bridge for You to Cross”, de 2023. “É um disco de soul music branca, ainda que esse termo hoje não soe muito simpático. Intérpretes ingleses e escoceses cantando com sotaque americano”, comenta.

“Cheguei à conclusão de que eles encontraram a libertação nas vozes dos outros. Vozes de autoexpressão e capacidade de expressão. Mais próximo da realidade do que estava acontecendo dentro de seus corpos do que qualquer coisa que sua própria cultura lhes oferecesse”, comenta. “Sabe, as pessoas que vinham de classe operária desses países se identificaram com as vozes do povo preto, que foi tão oprimida pelos colonizadores”, teoriza.

Em 2016, Antony mudou seu nome para ANOHNI e reafirmou ser transgênero. “Desde que comecei minha carreira, sempre fui transgênero. E sempre usei essa palavra para me descrever”, justifica. “Viajei o máximo que pude com esse nome que minha mãe me deu e eu não quis mais. Passei por uma transformação, muitas pessoas podem simplesmente passar por uma espécie de transformação espiritual ao longo de suas vidas, o que requer um novo tipo de nome.”

E o que ANOHNI acha que poderá acontecer com a comunidade LGBTQIA+ durante o governo de Donald Trump? “Muitas pessoas nos Estados Unidos estão temerosas sobre o que vai chegar.” Aliás, não apenas nos Estados Unidos. Há casos de aumento de violência contra pessoas transgênero tanto no país que elegeu Donald Trump, mas também no Reino Unido. “Eu não creio que iremos resolver essa situação pelo ponto de vista das nações, para mim ela tem de ser resolvida pela sociedade. Porque a ideia de nação está muito ligada a um pensamento antigo”, diz.

Uma das características do trabalho de ANOHNI está na mistura de música, teatro e pintura. Em 2011, por exemplo, apresentou um espetáculo multimídia no Radio City Music Hall, em Nova York. A obra foi comissionada pelo Metropolitan Museum of Art. “Esse foi um dia muito especial para mim.

Foi realmente um daqueles dois ou três shows mais importantes porque eu estava em casa. Fiz um show no meu lar”, comenta a artista, que mora há três décadas em Nova York. Em 2015, o público paulistano foi presenteado com uma parceria sua com Yoshito Ono, filho de Kazuo Ohno, mestre do teatro butô (estilo japonês que mistura dança e artes dramáticas).

“Sinto muita falta de Yoshito, ele se foi tão de repente”, lamenta ANOHNI, referindo-se ao amigo que morreu em 2020. “Às vezes, sonho que ele vem me visitar.” Yoshito, aliás, foi quem deu a definição musical que mais agrada a cantora. “Ele disse que faço música butô.” Muitas vezes, sugere um tipo diferente de audição. Como fazer uma audição de sua música na mais completa escuridão. “Foi apenas uma chance para as pessoas conferirem a música que você conhece de um modo diferente.”

Recentemente, ANOHNI preparou um espetáculo com canções de Lou Reed chamado “Dark Blue”. “É uma homenagem, uma revisão do catálogo de Lou Reed. Fui seu backing vocal e ele era meu amigo próximo. Já faz mais de uma década desde que ele morreu e decidi voltar a esse catálogo”, diz. “Fiquei surpresa por termos tocado as músicas próximas das versões originais.” Se ela virá ao Brasil com esse show? Até pensei em perguntar, mas não aguentaria outro “não seja ridículo” de alguém que adoro tanto.

[Esta entrevista foi publicada na 13ª edição da Billboard Brasil. Adquira sua revista aqui.]

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