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IA na música: avanço criativo ou ameaça aos direitos autorais?

IA na música: avanço criativo ou ameaça aos direitos autorais?

Em 2009, Jay-Z tentava matar o autotune. A canção “D.O.A. (Death of Auto Tune)” elegia o software de afinação como um vilão.

O lançamento causou espanto. T-Pain, rapper e uma das maiores referências do uso da ferramenta na produção musical, se assustou com versos como: “Essa é contra o auto tune, a morte do ringtone / Essa não é para o iTunes, não é para você cantar junto”. Soou como uma indireta vinda de um dos maiores nomes do hip-hop.

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Vista inicialmente com fascínio, a tecnologia termina, quase sempre, eleita como vilã. Em 2009, era o autotune, um sinal de processamento digital. Dezesseis anos depois, o alvo são as IAs como o Suno ou o Udio —basta dizer que tipo de música que uma interface web “cria” uma música.

Mais do que queimar cruzes, artistas querem, agora, saber como essas inteligências artificiais vão se alimentar — e, mais importante, se vão pagar pelo conhecimento extraído de obras já existentes.

Ferramenta, não substituto

Por outras bandas, artistas preferem aplicativos como o Moises. O aplicativo brasileiro separa, em um piscar de olhos, elementos de uma música — como vocais e instrumentos — e ilustra bem o quanto o mercado se transformou nos últimos anos. Lançado em 2020, o app começou desbravando um terreno ainda incerto.

“Foi um período em que tivemos que apresentar o aplicativo, explicar os benefícios e como isso poderia ser útil no dia a dia”, lembra Rafael Lyra, produtor executivo audiovisual da empresa. Com feedbacks constantes vindos diretamente dos usuários — de artistas renomados a produtores anônimos — o Moises moldou sua tecnologia para servir aos criadores, não para substituí-los.

Popularíssimo, ele é um dos aplicativos mais queridos entre os produtores. Além de separar voz do instrumental, ele oferece um banco de vozes que permite aos criadores experimentar suas músicas já com um timbre próximo do resultado final. “Queremos empoderar o potencial criativo de quem está do outro lado. Por isso, nossa escuta ativa é prioridade”, explica Rafael.

Criar com — e a partir de — IA

Se, para alguns, as IAs funcionam como facilitadoras, para outros, são também ponte criativa. E é justamente a diferença entre “ponte” e “fonte” que vai marcar as obras produzidas sob a luz das inteligências artificiais no século 21. O produtor musical DJ PS2Desbloqueado — nerd dos videogames que hoje é visto como revelação do eletro-funk — é um dos muitos que, no funk, “desgruda” vozes e elementos para criar novas canções.

“Isso me abre um leque de possibilidades na hora de ser criativo e ressignificar essas faixas”, explica. “É como um avanço na tradição do sampling, só que mais flexível.”

Ao contrário de um sample — que depende da liberação do detentor dos direitos da obra para ser usado — ferramentas de IA trabalham com bibliotecas próprias.

“O problema não é a tecnologia, mas a forma como a sociedade a utiliza visando lucro, e não o bem-estar. Isso também ajuda a explicar o medo que muita gente sente”, pondera o produtor fluminense radicado no Japão.

A compositora Tallia, autora de músicas como “Favela Chegou”, gravada por Ludmilla, e “Ai Papai”, gravada por Anitta, traz outro olhar: o da IA como um treino criativo.
“Nunca fiquei preocupada com a IA roubar meu trabalho. Pelo contrário: pensei em como ela poderia nos ajudar.” Ela já utilizou plataformas como o ChatGPT para testar ideias de letra e até para resolver dúvidas sobre produção. “Mas é preciso ter o mínimo de conhecimento musical pra aproveitar bem. A IA não resolve tudo.”

Tallia recorre à ferramenta não para obter um resultado final, mas para buscar soluções. “Uso pra pesquisar ideias de temas. Algo como ‘ideias de temas legais para uma música sertaneja romântica e que não seja tão clichê’ ou ‘me dê uma lista de palavras que rimam com a palavra x e que tenham a ver com y’”, explica.

Mesmo assim, ela pede que a reportagem saliente que é “contra escrever música com o ChatGPT” — o que demonstra como essas IAs ainda possuem pouca aceitação como auxiliares na criação.

Entre direitos e dados

“Eu vou dar um conselho”, inicia Gustavo Deppe, advogado especializado em assuntos musicais — e que, atualmente, produz, com sucesso, conteúdos sobre direitos autorais em plataformas como Instagram e TikTok.
“Quando forem usar esse software, como o Suno [IA que cria canções a partir de prompts de usuários], é preciso tomar muito cuidado com os termos e condições que as plataformas pedem na hora do uso”, ensina.

A preocupação não é à toa: por vezes, um produtor usa plataformas como essas para expandir uma criação própria. No entanto, pode haver um prejuízo ali. “Ele cria uma linha melódica, por exemplo, e pede ao Suno para fazer uma contraparte, um beat. Só que, quando ele aceita os termos e condições, o artista concorda que essa linha melódica sirva para alimentar a base de dados que, eventualmente, pode ser usada de forma comercial.”
O resultado? O produtor não vê a cor desse dinheiro.

E é aí que mora a grande treta: no treinamento dessas inteligências artificiais. Afinal, para executar o pedido do usuário, essas ferramentas fazem uso de um acervo alimentado por obras já existentes — músicas, textos, imagens e vozes.
Com a popularização das ferramentas generativas, surge uma pergunta incômoda: quem é dono do que a IA cria? Mais do que isso: qual o controle que a sociedade tem sobre quais obras foram usadas nesse preparo algorítmico?

“A gente precisa olhar para três instâncias: o mercado, o Judiciário e o Legislativo”, diz Deppe.

Deppe lida atualmente com um caso emblemático: autores da canção viral “Beijo, Blues e Poesia”, gravada em 2015 pela dupla K-Sis, descobriram que a obra vinha sendo usada por canais do YouTube com vozes geradas por IA de artistas famosos — tudo sem autorização.
“Esses conteúdos estão sendo monetizados, e os autores originais não recebem nada”, relata.

Além disso, há riscos ocultos nos próprios termos de uso de algumas plataformas. “O produtor que usa certos softwares pode estar, sem saber, autorizando que suas criações alimentem a IA e sejam comercializadas depois — sem nenhum retorno financeiro.”

E daqui pra onde?

O horizonte da música feita (ou mediada) por inteligência artificial ainda está longe de um consenso. Para a compositora Tallia, o uso responsável é possível — desde que a tecnologia complemente, e não substitua.

“Sou contra qualquer plataforma que construa uma música inteira com pedaços de outras. Isso fere os direitos autorais de outras pessoas.”

Gustavo Deppe alerta para a chegada iminente de sucessos gerados majoritariamente por IA.

“A questão não é mais ‘se’, e sim ‘como’ vamos reagir. E, por enquanto, o Brasil ainda está despreparado.”

Na Europa, uma lei chamada Artificial Intelligence Act (ou AI Act) entrou em vigor em agosto de 2024 com dois objetivos principais: estabelecer uma política de respeito aos direitos autorais e exigir transparência nos dados de treinamento — ou seja, ferramentas precisam divulgar publicamente um resumo detalhado dos conteúdos utilizados para treinar seus algoritmos.

Foi essa legislação que inspirou o debate atual sobre IA no Brasil.

Atualmente, tramitam no Congresso Nacional três projetos de lei voltados à regulamentação da inteligência artificial e sua relação com os direitos autorais:

  • PL 2338/2023 – busca criar um marco regulatório para o desenvolvimento e uso da IA no país (já aprovado no Senado em dezembro de 2024 e em análise na Câmara dos Deputados);
  • PL 1473/2023 – obriga empresas que operam sistemas de IA a oferecer ferramentas para que criadores de conteúdo possam restringir o uso de suas obras pelos algoritmos;
  • PL 3656/2024 – propõe alterações na Lei nº 9.610/1998, a fim de estabelecer regras sobre direitos autorais de obras geradas integral ou majoritariamente por IA de forma autônoma.

Dezesseis anos depois de Jay-Z tentar matar o autotune, estamos mais distantes do que nunca de um funeral.
Pelo contrário: há um clima de euforia com as possibilidades infinitas dessas ferramentas — a despeito do medo constante de uma superação robótica do material humano.

Agora, o que todos esperam é a hora do acerto de contasnão com os robôs, mas com os humanos por trás deles, que fazem arte a partir da arte de outros humanos.

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