Tomorrowland Brasil 2023: muita lama, chuva e geral nem aí
Depois de sete anos, festival belga volta ao país para três dias de rave
Chegar à terra prometida é um teste de fé para muitos dos 180 mil usuários dessa viciante peregrinação em busca do grave chamada Tomorrowland Brasil. A edição de 2023 tinha cara de perrengue e, como confirmaram vários fãs da vibe oferecida pelo festival, tudo era uma delícia. Aquele que se dirigia ao Parque Maeda, em Itu, com um olhar mais observador, podia estranhar muitos desses perrengues — inclusive, o segundo dia do festival foi cancelado por conta das chuvas.
O acesso ao parque pela SP-075 é exclusivo a carros particulares ou vans, num caminho que, estando sóbrio, conduz a experiência de forma confusa até a chegada às portas do festival.
“Sobrando eu compro”, diziam inúmeros cambistas que tentavam engambelar turistas de todas as partes da América Latina.
“Yo no quiero nada”, gritava uma guatemalteca para uma insistente família de vendedores não oficiais que retrucavam com “Minha filha, você pode levar a pulseira! Mas me entrega no final!”.
Pulseiras válidas para os três dias eram vendidas por R$ 2 mil —mas para uso apenas no dia. Ao todo, 98 países marcaram presença na edição brasileira que originou-se na Bélgica.
O preço oficial para a experiência Tomorrowland começa em R$ 525 e chega a R$ 2.625. Quem desembolsa esses valores acessa, com menos ou mais conforto, o festival como qualquer outro: uma área vip aqui, um banheiro menos químico acolá — e todos esses ingressos esgotaram-se.
Mas a grande parada do festival é um pacote (também esgotado) chamado Magnificent Greens que dá direto ao uso do Dreamvillage onde, de fato, você encontra quem tá ligado no que é um perrengue. E, como dissemos, não há perrengue para quem tá na vibe.
Muita chuva, barracas voando e uma inesperada calmaria
O primeiro dia do festival foi exclusivo para os compradores do tal Magnificent Greens. Eram 17 mil pessoas que foram de 0 a 100 já na largada e que, no meio da onda, tiveram que virar a chavezinha da responsabilidade para cuidar das barracas que voavam e inundavam com os fortes ventos e chuva que abateram Itu na quarta (11).
Chuvinha na tomorrowland brasil.. pic.twitter.com/j5oKfOGHwJ
— Mochilinha de boy ALTO (@_IgorZanon) October 12, 2023
A previsão do tempo era um tanto pessimista para os quatro dias de festival. Mas, mesmo sem contrato com o Cacique Cobra Coral, o festival teve momentos de inesperada calmaria metereológica, principalmente a partir das 21 horas. Nos momentos de água, nenhum palco do festival ficou vazio ou com clarões.
Como que tematicamente, a belga MATNN soltava um edit de “Umbrella”, de Rihanna, conceituando ironicamente aquele singelo momento de muita lama e rostos um tanto satisfeitos com a ausência de guarda-chuvas.
Como diz a canção “Nothing Else Matters”, do Metallica, também executada de forma bem EDM pela DJ, nada importa quando acredita-se no que se está fazendo. E, seja por convicção ou mesmo incapacidade de se locomover, tava geral ali acreditando.
Nem sempre um bando de drogados (às vezes, é só um ex-cozinheiro do programa ‘Mais Você’)
Pergunto a Michele Adriani para onde ela está indo com uma calma invejável enquanto o duo holandês Sunnery James e Ryan Marciano começava a espancar o público introduzindo a manjada (e carismática para todo gringo) “Baianá”.
“Estou indo consertar minha roupa, a alça do meu top caiu”, dizia reluzente em lantejoulas verdes a raver que, em horário comercial, dedica-se à enfermagem.
Antes do Tomorrowland, ela marcou presença na Mandallah, rave que rola em Caçapava, no Vale do Paraíba.
“Eu sou uma jovem senhora de 40 anos. Você conseguiu perceber que eu estou sóbria?”, perguntou para, depois, afirmar que só tinha tomado “uma Skol Beats” e mais nada, ao contrário de seus amigos, loucos de bala (ecstasy) e doce (LSD).
Michele era uma das 50 mil pessoas acampadas na sossegada vila do festival. Lá, a lama era rara, as redes confortáveis e o clima era de proteção.
“Essa barraca é do meu amigo”, dizia Michele como uma guia apontando para uma acomodação que ostentava uma piscina.
Em um raro movimento na cena, o Tomorrowland se coloca expressamente contra drogas. No site oficial, palavras rígidas afirmam que usuários serão tratados da mesma forma que traficantes: retirados do festival e, a depender, encaminhados à polícia.
“Eu comecei a usar em 2019”, me introduz biograficamente Bruno Alves a sua experiência com bala, sua droga sintética predileta.
“Me faz ter uma vibração maior, sentir o som na pele. A música eletrônica para mim é isso também”, diz o consultor comercial, de torso desnudo e sarado em um cenário de chuva e vento frio. Ele diz não entender como um evento que ostenta esculturas de cogumelos gigantes em um dos palcos pode ter essa posição.
O movimento do festival também soa conservador a Lucas Moreira, de 28 anos, com olhos estalados e felizes. “Eles proibirem isso em pleno 2023 é tão careta! Ninguém aguenta ficar num festival três dias de cara”.
Ao lado de seu par, Rafael, e em uma velocidade um tico maior que a do repórter, Lucas fez-nos saber que também é cozinheiro de mão cheia e foi colocado à prova no pequeno reality show “Jogo de Panelas”, que surgia como um quadro do programa “Mais Você”, da TV Globo.
“Ela foi muito fria comigo”, disse fofocando sobre Ana Maria Braga, dona do programa, para elegantemente introduzir uma história dolorosa.
“Mas aí contei como ela era uma inspiração pra mim. Um dia, bem pequenininho, vi e anotei uma receita de suco, daqueles de pózinho, sabe? Mas um tio meu alertou que aquilo era coisa de bichinha”.
A resposta de Lucas veio em forma de maniçoba, tacacá e outras delícias do seu país, o Pará, que preparou para o programa e também como forma de perseverança após a reprimenda homofóbica de seu tio.
O relato de Lucas, apesar de contar com personagens como Ana Maria Braga e Louro Mané, é mais um em uma multidão cheia de lama até a cabeça na vida social.
Sintomas do alto BPM da vida cotidiana como ansiedade, depressão, burnout são hits em uma classe média que não sabe para onde vai — e, na dúvida, acaba seguindo o som para se livrar da culpa de não se entender e de não ser entendido. No Tomorrowland, pelo menos, a lama limitava-se aos pés.
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