Raul Seixas vive: série e tributos lembram os 80 anos do roqueiro
Cantor e compositor baiano foi pioneiro na mistura de rocks e ritmos folclóricos
Quando Raul Seixas morreu, no dia 29 de agosto de 1989 (quer dizer, isso é o que a imprensa golpista quer que a gente acredite: Raul, assim como Elvis, é eterno), ele não passava de um ex-roqueiro em atividade. Embora tenha lançado um de seus melhores discos em anos – “A Panela do Diabo”, ao lado do cantor e discípulo Marcelo Nova–, o rockstar baiano sofria boicote das gravadoras, que não aceitavam seu comportamento errático; os shows eram cada vez mais raros, mesmo porque nunca se sabia se Raul iria aparecer no palco ou não, e sua saúde estava em frangalhos por causa do abuso de drogas, em especial o álcool. Raul era um risco que poucos queriam assumir.
A morte (Morte? Que morte?), contudo, mostrou que o artista Raul Santos Seixas sempre foi maior do que a lenda formada em torno de sua trajetória. De tempos em tempos, ele é objeto de tributos –alguém lembra de Bruce Springsteen cantando “Sociedade Alternativa”? –, e seu nome é garantia de bons rendimentos. Um dos casos mais exemplares é “Raul: o Início, o Fim e o Meio”, (2012) documentário sem brilho de Walter Carvalho, que foi assistido por mais de 170 000 pessoas.
Raul Seixas completa 80 anos no sábado, dia 28 de junho, com direito a homenagens especiais. Vívian, filha mais nova do cantor e compositor baiano, criou o evento “Raul Seixas e o Rock das Aranhas” ao lado da também DJ Paula Chalup onde tocam músicas do compositor de “Mosca na Sopa” e exibem vídeos de entrevistas. No dia 28, o Circo Voador traz um show tributo dirigido pelo guitarrista Rick Ferreira, sideman de alguns dos melhores discos do Raulzito, que terá vários convidados especiais. Por fim, o Museu da Imagem do Som (MIS), em São Paulo, estreia dia 11 de julho a mostra “O Baú de Raul”, contendo a memorabilia do cantor.
O projeto mais ambicioso em torno de Raul Seixas, no entanto, será “Raul Seixas: Eu Sou”, que estreou hoje na plataforma de streaming Globoplay. Escrito por Paulo Morelli e com direção de Paulo e seu filho, Pedro, é uma biografia do roqueiro dos tempos de adolescência até o final da vida. O papel principal está a cargo de Ravel de Andrade (irmão do também ator Júlio de Andrade, que viveu Paulo Coelho no cinema) e João Pedro Zappa se encarrega de dar vida ao parceiro de ator em canções como “Al Capone” e “Gita”.
Nascido em Salvador, Raul Seixas se apaixonou pelo rock de Elvis Presley e Little Richard no início da adolescência. Tinha doze anos quando criou o Elvis Rock Club e aos dezoito criou o grupo The Panters, mais tarde conhecido como Raulzito e seus Panteras. Em 1968, o grupo lançou seu disco de estreia, que teve uma acolhida pífia entre o público e a crítica. No mesmo ano, o cantor Jerry Adriani indicou Raul para ser diretor artístico da CBS. Na companhia, Seixas produziu desde Adriani a Leno & Lilian, Odair José e Renato e seus Blues Caps.
O disco “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez” (1971), uma pérola de rock e MPB experimental que gravou ao lado de Edy Star, Sérgio Sampaio e Míriam Batucada, selou seu destino na CBS. Raul bandeia-se então para a Phillips, onde cria a persona do roqueiro místico. Foi pela companhia que soltou seus principais lançamentos, como “Krig-ha, Bandolo!”, “Gita” e “Novo Aeon”. Em seu novo momento, iniciou uma parceria frutífera com Paulo Coelho, que rendeu sucessos como “Gita” e “Al Capone”. Raul, contudo, teve outros parceiros igualmente importantes: Cláudio Roberto, com quem criou “Maluco Beleza”; Marcelo Motta, co-autor de “Novo Aeon” e “Tente Outra Vez”, e Oscar Rasmussen, que colaborou no disco “Por Quem os Sinos Dobram”.
Raul Seixas tem tanta importância musical quanto comportamental no cenário brasileiro. Foi pioneiro no amálgama entre o rock americano e ritmos brasileiros, como forró, baião e samba. O cantor encarnou, como poucos, a figura de guru, de profeta. Raul criou a Sociedade Alternativa ao lado de Paulo Coelho, uma espécie de associação baseada nos escritos do bruxo inglês Aleister Crowley –sim, o “Mr. Crowley” sobre o qual Ozzy Osbourne falava em sua canção. O resultado foi que Raul e Paulo acabaram enquadrados pelos órgãos da repressão e despachados para os Estados Unidos.
Os discos que lançou entre 1972 e 1975 são básicos para quem deseja entender a obra de Raul Seixas (veja a discografia selecionada abaixo). Ali estão as principais obras do cantor e compositor baiano. Os trabalhos seguintes, embora não se equiparem em brilho aos álbuns iniciais, possuem grandes momentos do cancioneiro “raulseixista”, como ele gostava de dizer.
Os excessos, principalmente com o álcool, inibiram sua criatividade e brecaram sua carreira. Ele perdeu ⅓ do pâncreas e o descuido com a saúde piorou sua diabetes. Para piorar, ele não controlava sua devoção à bebida nem quando entrava no palco –era comum se apresentar bêbado, sem as mínimas condições de tocar e cantar. A turnê ao lado de Marcelo Nova, meses antes do disco “A Panela do Diabo” chegar às lojas, foi considerada um milagre. Elas chegaram a 50 shows, algo raro na carreira recente do cantor e compositor baiano. “Raul morreu em pé, no palco”, chegou a declarar Nova (mas, meu amigo, quem disse que Raul morreu????). O maior roqueiro brasileiro saiu de cena no dia 29 de agosto. Seu legado, porém, tem se estendido por diversas gerações
DISCOGRAFIA SELECIONADA
“Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10” (1972)
O disco foi gravado em segredo por Raul Seixas (então diretor-artístico da gravadora CBS) ao lado de Edy Star, Sérgio Sampaio e Miriam Batucada. É um trabalho experimental, onde sambas, baiões e serestas se unem ao rock’n’roll. O engavetamento do trabalho pela companhia –que odiou o projeto– foi o elemento catalisador para Raul Seixas partir para a carreira solo.
“Krig-ha Bandolo!” (1973)
Primeiro disco solo de Raul Seixas, ele teve seu nome tirado do grito de guerra do personagem Tarzan. Traz algumas das melhores composições do cantor e compositor baiano – “Metamorfose Ambulante”, “Mosca na Sopa”, o hino inconformista “Ouro de Tolo” – e os primeiros frutos da parceria com Paulo Coelho. “Al Capone” é desse disco.
“Gita” (1974)
O prólogo desse disco é a prisão de Raul Seixas e Paulo Coelho por causa da Sociedade Alternativa – baseada nos escritos do bruxo inglês Aleister Crowley. Os dois foram interrogados por oficiais dos órgãos da repressão e depois acabaram exilados nos Estados Unidos. O sucesso da faixa-título, que começara a tocar nas rádios, fez com que a dupla fosse trazida de volta. “Gita”, “Sociedade Alternativa”, “O Trem das Sete” são alguns dos hinos do álbum.
“Novo Aeon” (1975)
É o meu predileto e o favorito também de Marcelo Nova (Camisa de Vênus), discípulo de primeira hora do Raulzito. É dele que saíram hinos como “Tente Outra Vez” (cuja letra que fala de não desistir é tão forte que ajudou Chitãozinho a seguir na carreira de sertanejo), “A Maçã”, um hino é liberdade sexual, e “Tus é o MDC da Minha Vida”, que traz um amálgama entre o rock e a música brega dos anos 1970.
“O Dia em que a Terra Parou” (1977)
O trabalho marca a estreia de Raul Seixas na gravadora Warner e a estreia oficial de um novo parceiro, Cláudio Roberto. A parceria marca no mínimo um golaço, “Maluco Beleza”, que virou hino do repertório de Raul. O álbum, recebido (injustamente) com frieza pela crítica e pelo público, tem como destaque ainda a faixa-título e “Tapanacara”, uma tirada de sarro em cima dos tropicalistas.
“Abre-te Sésamo” (1980)
Primeiro e único disco de Raul Seixas na CBS, em cujo escritório conheceu sua quarta mulher, Kika, que até hoje é uma das principais mantenedoras de seu catálogo. Raul criou dois hits, “Aluga-se” (onde ele fala de alugar o país para os americanos) e a engraçadíssima “Rock das Aranha”. É ali que tem “Só pra Variar”, outra beleza de seu repertório.
“Raul Seixas” (1983)
É o trabalho preferido de Vívian Seixas, filha mais nova de Raul, porque saiu dois anos depois do nascimento da DJ. Ele traz ainda uma das canções mais populares da última safra do cantor e compositor baiano – “O Carimbador Maluco”, que entrou na trilha de um especial infantil da Globo. Uma das melhores canções é “D.D.I. – Discagem Direta Interestelar”, parceria dele com a mulher, Kika, na qual Deus avisa ao povo da terra para tomar cuidado com o diabo.
“A Panela do Diabo” (1989)
O disco gravado ao lado de Marcelo Nova, vocalista do Camisa de Vênus e seguidor confesso, é o último trabalho de Raul Seixas. Embora combalido pelos excessos de álcool e drogas –e os efeitos delas no seu corpo–, ele foi ainda capaz de entregar grandes canções. Duas delas são memoráveis: a balada “Carpinteiro do Universo” e a engraçadíssima “Pastor João e a Igreja Invisível”