Quando a curadoria musical vira manifesto
Artigo de Maurício Sacramento reflete sobre eventos culturais


Viver a cena cultural de Salvador é entender, desde cedo, o contraste entre a potência e a ausência. A música que ecoa dos nossos bairros e molda a sonoridade de todo o país, mas por muito tempo, o mercado fonográfico virou as costas para essa força criativa que nasce das periferias, dos corpos negros, das vozes dissidentes.
Mas algo está mudando. A cultura que era tida como alternativa ou marginal agora pauta tendências, define pistas e movimenta economias. E isso não é apenas um movimento estético. É político, é estratégico e inevitável.
Hoje, o Brasil está entre os 10 maiores mercados de música do mundo, com um faturamento de R$ 3,4 bilhões em 2024, segundo a Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI). O streaming responde por 85% dessa receita, e é justamente nos fones de ouvido das quebradas e nas playlists de favela que o novo som brasileiro nasce. Gêneros como funk, trap, pagodão e afrobeat vêm do povo e vão para o mundo. O país já é o quarto maior mercado em volume de streaming, de acordo com a Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus). O que antes era visto como “local” agora tem escala global.
Mesmo assim, seguimos enfrentando distorções importantes. De acordo com a WME (Women’s Music Event), apenas 16% dos line-ups dos grandes festivais brasileiros são compostos majoritariamente por artistas negros. A presença LGBTQIA+ e periférica também segue desproporcional. Isso revela que, embora o consumo tenha mudado, a estrutura do mercado ainda caminha a passos lentos na construção de um ecossistema mais justo.
É nesse cenário que a curadoria deixa de ser apenas uma escolha e passa a ser uma narrativa, um compromisso, um manifesto. Selecionar quem sobe ao palco é também dizer quem tem o direito de imaginar o futuro. Hoje, são os coletivos, as festas independentes e os movimentos culturais negros e LGBTQIA+ que vêm fazendo esse trabalho com coragem, visão e verdade.
Quando a Boiler Room True Music x Ballantine’s nos convidou para assinar a curadoria da edição de Salvador, sabíamos que não se tratava apenas de um evento. Era um ponto de inflexão. Criamos uma programação que representa quem está movimentando a música baiana e brasileira hoje. Artistas como Ilê Ayê, referência histórica de continuidade que inspira a BATEKOO, Rafa Dias e Mahal Pita, do projeto A.MA.SSA, pioneiros na fusão entre pagodão e música eletrônica. Nomes como Bruxa Braba, Bruno Kroz, Fittec, Áurea Semiseria e Fal Clássico, que representam um rap baiano múltiplo, ousado, com sotaque e sem pedir licença. E Boyzinho, rei da bregadeira, provando que o que é popular também pode ser vanguarda.
Essa curadoria não é apenas sobre uma cidade, mas sobre um país inteiro. Onde o som que nasce nas mentes da comunidade negra vira trilha de campanha global. Em que as festas se tornam espaços de formação política e redes de cuidado. Onde a cultura preta, periférica e queer não pede espaço. O Toma.
Estamos construindo nossos próprios palcos. E mais do que isso, estamos fazendo com inteligência cultural, com estratégia, com afeto e com impacto.
A cultura sempre foi ponte. Mas agora é também motor de transformação econômica e social. Festividade é política. Música é política. E a curadoria, mais do que nunca, precisa ser feita com consciência de tempo, de território e de quem ficou tempo demais sem microfone.
O Brasil é uma potência musical. Mas só será verdadeiramente justo quando reconhecer de onde vem essa potência e investir nela.