O novo sertanejo: cantoras LGBTQIA+ lutam por diversidade dentro do gênero
Lauana Prado, Paula Mattos e Luiza Martins estão na 4ªedição da Billboard Brasil
O sertanejo está mudando. Com a chegada — e ascensão — de cantoras sertanejas LGBTQIA+, o gênero considerado conservador passa por uma transformação. Esse movimento está sendo encabeçado por nomes como Lauana Prado, destaque nos charts da Billboard Brasil, Paula Mattos e Luiza Martins.
Elas são destaques da quarta edição da Billboard Brasil, já nas bancas, e falam como tem sido a caminhada para se firmarem como artistas, sem ignorar suas respectivas sexualidades.
Como (quase) tudo começou
O ano era 2015 e as rádios sertanejas de todo o país haviam sido invadidas pelo hit romântico “Que Sorte a Nossa”, composto por Paula Mattos e regravada por Matheus e Kauan. A música, que dizia “Tantos sorrisos por aí, você querendo o meu”, conquistou corações apaixonados por todo o Brasil. O que os fãs não sabiam, na época, é que ela havia sido composta por uma mulher LGBTQIA+. E eles não sabiam por um motivo bastante comum para membros da comunidade (eu mesma, uma mulher lésbica, inclusa): o medo da rejeição e do preconceito.
Tomada de coragem e dona de uma trajetória sólida no meio da música (Paula assina composições para grandes nomes do sertanejo, como Gusttavo Lima, Luan Santana e Wesley Safadão), ela resolveu abrir o jogo em 2020. “Muitas pessoas do mercado já sabiam que eu era casada, mas o público tinha essa curiosidade. Quando comecei a falar sobre, achei que a reação seria negativa”, lembra a cantora.
Paula não está sozinha nesse movimento. Embora o meio sertanejo seja conhecido por seu tradicionalismo, existe um número razoável de artistas mulheres que expõem sua orientação sexual sem medo de sofrer represálias.
A goiana Lauana Prado é uma dessas heroínas. Ela deu início à sua caminhada no sertanejo em 2016, com o lançamento de “Ensaio Acústico”, seu primeiro álbum. Dois anos depois, emplacou “Cobaia”, parceria com Maiara e Maraisa.
Em 2021, revelou ser uma mulher LGBTQIA+. O fato de ter se assumido não diminuiu o respeito que fãs e contratantes tinham e têm por ela. Por outro lado, a responsabilidade de representar a comunidade também carrega seu peso. “Tenho a missão de inspirar novas mulheres a alcançarem resultados tão positivos quanto os meus”, comenta.
Já a cantora e compositora mineira Luiza Martins, antes mesmo de se tornar figura pública, em 2017, havia se assumido lésbica para a família. “Se eles soubessem era o suficiente para mim. Nunca senti a necessidade de me assumir de maneira formal para o público.”
O início da carreira foi ao lado de Maurílio, morto em 2021. Quando decidiu voltar para atrás do microfone como cantora solo, sentiu que poderia ter uma trajetória tortuosa. Para Luiza, ser uma mulher LGBTQIA+ dentro de um gênero considerado conservador é uma quebra de paradigmas. “Esse pensamento está entremeado na sociedade, como se o sertanejo e a diversidade fossem desconexos. Meu objetivo é mostrar que isso não existe. A vida que eu levo é como a de qualquer outra pessoa.”
Cenário tortuoso
Paula, Lauana e Luiza são exceções honrosas num cenário pouco afeito às diferenças. A homossexualidade, no mundo do agro, por muito tempo foi tratada em tom de galhofa, com letras carregadas de duplo sentido e preconceito.
No início dos anos 1990, duas figuras vestidas com chapéu de cowboy e roupa cor de rosa eram presença garantida na televisão. José Renato e Daniel Cardamone, ambos heterossexuais, se transmutaram numa dupla gay de nome Rosa e Rosinha. As letras cantadas por eles apontavam, de maneira geral, relações homossexuais como promíscuas e lascivas. “De camiseta, chinelo e calção, ‘sentamo’ no toco com a vara na mão”, diz “Pacu pra Comer Cru”.
“Quando criamos a dupla, nossa intenção era fazer algo diferente, que tivesse impacto no mercado. Era uma grande brincadeira”, justifica José Renato. Para ele, Rosa e Rosinha representaram o primeiro levante da bandeira LGBTQIA+ no Brasil, apesar dos estereótipos que usavam para retratar as relações homoafetivas.
Essa visão distorcida –e preconceituosa– também é vista em trabalhos de outros artistas sertanejos. “Ver dois homem abraçado/ Pra mim era confusão/ Mulher com mulher beijando/ Dois homens se acariciando/ Meu Deus, que decepção”, professam João Mineiro e Capataz em “Bruto, Rústico e Sistemático”, canção de 2009 (e não do século passado). E olha que eles tentaram consertar nos versos seguintes, mas a emenda saiu pior do que o soneto. “Achar ruim é preconceito/ Mas não fujo à minha essência/ Pra mim isso é indecência/ Ninguém vai mudar meu jeito”. Já “Lili”, de Pedro Motta e Henrique, de 2020, fala do relacionamento de um homem com uma travesti, expresso em versos como “Lili/ Não tenho preconceito e vou te assumir”.
A ascensão do conhecido feminejo, liderado por nomes como Marília Mendonça, Simone (agora Mendes) e Simaria, Maiara e Maraísa em meados da década passada, foi o primeiro sinal de mudança. “Não resolveu o problema do conservadorismo, mas se tornou um outro mundo para o gênero. Hoje, é normal ver qualquer escritório com pelo menos uma mulher no portfólio”, opina André Piunti, jornalista e autor da obra “Bem Sertanejo: A História da Música que Conquistou o Brasil”. Ele acredita que o sucesso de Rosa e Rosinha se deu justamente por ser uma brincadeira. “Se eles de fato fossem gays, acredito que não teriam conseguido destaque.”
Os fãs apoiam
O público LGBTQIA+ inserido no universo sertanejo também sente que o cenário vem mudando. Ainda bem. “Sou do interior de Goiás. Por influência da região e, obviamente, da minha família, sempre gostei de sertanejo. Quando me assumi gay, isso não mudou”, diz o psicólogo e influenciador Odorico Reis, nos bastidores do festival Caldas Country, em dezembro passado, que reuniu diversas estrelas do gênero. “As pessoas, às vezes, acham que eu sou um personagem quando apareço de chapéu rosa e short curto. É um meio tradicional, então tem gente que acha interessante, tem quem olhe com curiosidade. Tento levar os comentários ofensivos no humor para as pessoas entenderem que precisa existir senso de igualdade. Sou como todos os outros fãs de sertanejo.”
O analista de marketing Lucas Alsil, 32, também teve influência da família para se tornar fã do gênero. “Quando Luan Santana lançou ‘Meteoro’, me rendi ao gênero. Na mesma época, me assumi gay”, conta. Lucas chegou a parar de ouvir as músicas de que gostava por causa do posicionamento político de alguns artistas, principalmente do gênero masculino, mas diz que segue escutando as mulheres. “Não passei por nenhuma situação hostil, mas acredito que seja por eu ser um homem branco e pouco afeminado.”
Para lidar com as nuances do assunto, Luiza defende que a naturalidade de sua vida amorosa precisa ser considerada –ela é noiva da ex-BBB e ginecologista Marcela McGowan. Além disso, argumenta que sua contribuição para a música em nada tem a ver com sexualidade. Já se uniu a nomes do sertanejo tradicional para colaborações e colhe os frutos desses trabalhos. “As coisas acontecem de forma natural. No fim das contas, quando a música é boa, não tem discussão.”
Lauana advoga pelo mesmo objetivo: o de normalizar a diversidade sexual no universo sertanejo. “É importante conseguir unificar esses mundos, principalmente em um país tão plural como o Brasil. Minha missão acaba sendo inspirar uma menina, ou mesmo um rapaz, a poder viver como quiser.”
Paula, que recebeu acolhimento de outros ritmos, como o pop e a MPB, na época em que se assumiu, defende que o talento é o arremate final. “Ficava pensando no que as pessoas iriam achar. Me aconselharam a pensar na forma como eu iria me portar e até nas roupas que eu usaria. Hoje, não ligo mais para isso. No fim das contas, o que vale é o respeito mútuo.”
O público mudou
Chitãozinho, da dupla com Xororó, acredita que o gênero — apesar das raízes conservadoras — está passando por uma transformação. “O público do sertanejo não é mais tradicionalista”, afirma o cantor, que ajudou a revolucionar a música sertaneja nos anos 1990. Xororó faz coro. “O que importa é que a música toque o coração das pessoas.”
A dupla Hugo e Guilherme, que representa a nova seara de sertanejos e está entre os artistas mais ouvidos dos charts da Billboard Brasil, concorda. “O gênero está se diversificando, mudando. Nos últimos 20 anos, muitas vertentes apareceram. Hoje, há espaço para todo mundo”, opina Guilherme.
Já Hugo acha que o público que segue resistente à diversidade está preso em um pensamento retrógrado. “Isso ficou no passado. Todo mundo é ser humano e merece respeito. O importante é fazer música boa.” Nesse ponto, essas mulheres têm sido perfeitas.
É como Roberta Miranda, outra estrela do gênero, já afirmou: “Temos que trazer negros, drag queens, gays, todos! É uma hipocrisia do tamanho do mundo isso de falar: ‘Ah eu sou do sertanejo, tenho que ser macho comedor, tenho que casar para não perder as fãs’. Eu fico aqui morrendo de dó, porque ninguém pode ser feliz. A vida é breve! Vá ser feliz!”