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Na escala do arco-íris, por Laura Finocchiaro

Na escala do arco-íris, por Laura Finocchiaro

Como a revelação de sexualidade na Rede Globo nos anos 1990 impactou carreira

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Laura Finocchiaro

“O ano era 1996 e não havia achincalhe ou cancelamento virtual quando alguém emitia uma opinião ou falava abertamente de suas escolhas afetivas. À época, eu já tinha 14 anos de estrada como compositora, cantora e guitarrista. Foi naquele ano que o telefone tocou e era da produção do ‘Globo Repórter’, que faria um programa sobre sexualidade e comportamento. Nos bastidores da cena paulista, eu já era conhecida como a ‘musa GLS’ –Gays, Lésbicas e Simpatizantes–, sigla que definia os espaços e que foi cunhada por um grupo diverso, entre eles Suzy Capó, cofundadora do Festival MixBrasil. Aos 33 anos, na TV aberta e de maior audiência do país, disse à repórter Ilze Scamparini que amava homens e mulheres. Diante de milhões de telespectadores, saí do armário, me assumindo, com orgulho –e sem nenhuma culpa– como bissexual.

No dia seguinte, além dos aplausos pela grande repercussão, alguns colegas me alertaram que aquela atitude poderia marcar também o fim de minha carreira promissora. Seria improvável que alguma gravadora investisse em uma artista lésbica, mesmo depois de ter inovado na música eletrônica, de ter sido revelação no Rock in Rio II, de produzir música para o ‘TV Colosso’, para filmes, de tocar guitarra, de fazer canções para românticos e para as pistas. Sim, muitas cantoras e cantores que faziam sucesso não toparam essa rebeldia. Não julgo ninguém por suas escolhas. A vida privada das pessoas não deveria ser assunto de fãs e empresas.

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Mas preciso lembrar que tínhamos menos de uma década do fim do regime militar. O cheiro da opressão ainda pairava no ar. Era difícil colocar a cara a tapa.

Graças à nossa constante luta e militância, hoje somos milhões de pessoas fora do armário, vivendo com mais direitos para provar novas identidades e provocar os mercados para que abram espaço e respeitem nossas diferenças. Que possibilitem o florescer de um novo ser humano em nossa sociedade. Mais humano, mais livre, mais tolerante e amoroso. E é disso que se trata. É tudo sobre o amor e não o ódio que hoje move as redes e os relacionamentos, produzindo bolhas separadas por recalques e cicatrizes.

Mesmo sem apoio das gravadoras, consegui produzir uma obra robusta e a saída do armário me levou naturalmente à militância. Participei das primeiras paradas de orgulho gay que exigiam respeito e direitos. Na primeira mobilização éramos apenas 50, 60 pessoas na Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, de onde agora tenho uma vista privilegiada do meu home-studio. Depois, crescemos. Cantar naqueles trios e mostrar os peitos foi libertador –mas também ameaçador.

Chegamos em 2025 com muitas conquistas. Reconheço que a indústria cultural foi obrigada a nos incluir. As gravadoras passaram a investir em novos rostos, antes submetidos a anos de exclusão por suas preferências sexuais, por suas origens, pela cor da pele. Homofobia e transfobia passaram a ser enquadradas como crime de racismo e ofensas diretas contra homossexuais e transsexuais podem ser punidas como injúria racial. Ao mesmo tempo em que o mercado enxergou no ‘pink money’ a oportunidade de fazer mais dinheiro, meu receio é que as estratégias comerciais das gravadoras para promover artistas continuem preservando as práticas abomináveis do jabá. Seria interessante que essa inclusão não fosse apenas um token para ficar bem na fita, mas que as estruturas e alicerces dessa indústria (incluindo também mídia, casa de shows, empresários) fossem também repensadas.

Nunca quis fazer música só para grupos fechados. Em quatro décadas de carreira, transitei do pop-rock ao techno, passando pelo baião, pela bossa, pela world music, até um disco em homenagem ao Nordeste e um dedicado a mantras de cura. Quando dirigi e produzi reality shows como ‘A Fazenda’ e ‘A Casa dos Artistas’, fiz questão de escutar todas as vertentes musicais, valorizando e incluindo músicas que parecem ignoradas pelas novas gerações e pelos players comerciais da vida.

Termino essa reflexão com uma analogia. No mundo musical, a ‘Escala Menor Melódica’, ideal para os improvisos jazzísticos, traz uma parte da ‘Escala Menor Natural’ e uma parte da ‘Escala Maior’. Ou seja, é uma escala híbrida, sendo composta por duas camadas tonais distintas, gerando assim uma gama de acordes e modos criados a partir da escala pregressa. Essa gama de novas sonoridades cria caminhos melódicos mais ricos.

Assim como a nossa comunidade LGBTQIAPN+ transgride normas e regras estabelecidas, na composição de uma canção o artista não constroi sua obra utilizando apenas acordes pertencentes ao ‘Campo Harmônico’ original da tonalidade estabelecida. Para que esta canção possa traduzir e sustentar os caminhos da melodia de forma rica e inusitada, precisará utilizar ‘Acordes de Empréstimo Modal’ (AEM), ou seja, vai ‘pedir emprestado’ de tonalidades vizinhas e misturá-los com acordes originais da tonalidade, podendo até mesmo mudar de tom, realizando uma modulação dentro da própria canção.

Para sermos plenos e únicos, precisamos nos misturar, mudar, inverter e, principalmente, somar, para assim chegar numa composição, numa peça, numa relação repleta de riquezas e harmonia. Como diz minha canção: ‘Esse mundo tá perdido, isso ninguém pode negar. Então junta todo mundo que é pro mundo melhorar’.”

[Esta entrevista foi publicada na 13ª edição da Billboard Brasil. Adquira sua revista aqui.]

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