Mario Caldato, o produtor que traduz a MPB para a comunidade internacional
Brasileiro radicado nos Estados Unidos, trabalhou de Beastie Boys a Marisa Monte


O termo brasilianista foi criado nos anos 1950 para classificar os acadêmicos –internacionais ou não– que escolheram o Brasil como objeto de pesquisa. E bota pesquisa nisso: em mais de sete décadas, eles trouxeram textos definitivos sobre a ditadura militar, política, questões sociais e raciais.
Paulistano radicado nos Estados Unidos, Mario Caldato é uma espécie de brasilianista do pop e da MPB brasileiros. O engenheiro e produtor musical radicado em Los Angeles tem traduzido as linguagens da música brasileira para as platéias internacionais. Produziu, entre tantos outros, Marisa Monte, Seu Jorge, Nação Zumbi, Bebel Gilberto, Planet Hemp e Marcelo D2 (calma, ainda iremos falar das produções internacionais que Mario traz em seu vasto currículo). Mais recentemente, criou o selo Amor in Sound, por onde lançou “Arruda, Alfazema e Guiné”, disco pop/religioso de Alvaro Lancellotti. “São canções de devoção nas crenças afro-brasileiras”, explica Caldato. “Eu escutei um ensaio do Alvaro e logo pensei: ‘Opa, temos de registrar esse trabalho’”, comenta.
Em 2025 estão previstos dois outros projetos. “Deixa a Gira Girar” é um tributo aos Tincoãs, grupo que combinou a música popular com os cantos afro e sambas de roda. Além disso, deve chegar às plataformas de streaming um trabalho de remixes da Orquestra Afro-Sinfônica.
E vamos a Mario. Ele tinha pouco mais de dois anos quando trocou o bairro de Santana, na zona norte de São Paulo, por Los Angeles. Na cidade americana, o futuro produtor estudou música erudita e durante a adolescência escolheu o teclado como instrumento de fé. Em 1986, Mario conheceu o DJ e produtor Matt Dike (1961-2018), que pediu para o brasileiro construir um estúdio na casa dele. “Na verdade, ficava no quarto. Os artistas chegaram até a registrar a voz no armário”, confessa o brasilianista. O estúdio caseiro rendeu à dupla produções de sucesso como “Wild Thing”, do rapper Tone-Loc (aquela que usa o sample de “Jamie’s Cryin’”, do quarteto de rock Van Halen) e lançamentos que primam pela curiosidade –caso de “Hip Hop Creature”, do rapper americano de origem cubana Mellow Man Ace, que usou a batida de “Tom Sawyer”, hit do trio canadense de rock Rush, à serviço de seus versos.
O passo seguinte foi ajudar na produção de “Paul ‘s Boutique” (1989), segundo disco do trio americano de hip hop Beastie Boys. “O Matt era fanático pelo Rick Rubin, primeiro produtor dos Beastie Boys. Certo dia, encontrou o Ad-Rock, um dos vocalistas do trio, e disse que queria mostrar o trabalho dele”, lembra o brasileiro. Mario trabalharia mais ativamente com o trio americano nos discos seguintes do grupo, “Check Your Head” (1992) e “Ill Communication” (1994). Caldato ganhou o epíteto de Mario C. e trabalhou como engenheiro de som do trio. Foi nessa função que ele desembarcou no Brasil, em 1995, para apresentações em São Paulo e no Rio.
A reconexão de Mario Caldato com o país fez com que ele fosse apresentado a diversas fases da MPB. “Saí conhecendo bandas novas, comprando discos históricos de música brasileira, em especial os do Jorge Ben [Jor]”, comenta o produtor. “Da outra parte, presenciei a gravação de “Maracatu Atômico” com Chico Science & Nação Zumbi, me conectei com a Hemp Family”, lembra o produtor, referindo-se ao combo canábico musical liderado pelo cantor e rapper Marcelo D2.
Caldato, como se diria no romance “O Cortiço”, de Aluísio Azevedo, “abrasileirou-se”. A reconexão o transformaria numa peça importante na produção musical dos últimos tempos. Ele trabalhou, por exemplo, em “Os Cães Ladram e a Caravana Não Pára” (1997), do Planet Hemp, e em “À Procura da Batida Perfeita” (2003), do vocalista Marcelo D2. “Mario moldou a minha sonoridade muito antes de eu conhecer ele. Sou fã do ‘Check Your Head’, dos Beastie Boys”, diz D2. “Ele é um tipo de gente que quando a gente está em volta, sente uma energia boa”, diz o rapper.
O estudo incansável da música brasileira rendeu pelo menos uma anedota –engraçada para todos, menos para Jorge Ben Jor, o grande prejudicado nessa história. Mario voltou da turnê brasileira dos Beastie Boys cheio de discos de música brasileira. Estudioso, criou uma coletânea de CD das suas canções preferidas do autor de “Mas Que Nada”. Essa, por sua vez, era dada como brinde na loja de um dos integrantes dos Beastie para quem fizesse uma compra maior de 50 dólares. Uma das agraciadas foi a então namorada de will.i.am, o mentor do grupo de hip hop Black Eyed Peas. Pois “Behind the Front” (1998), disco de estreia dos rappers, era recheado de samples de canções do swingueiro carioca, sem a devida autorização e pagamento de direitos autorais – entre as músicas surrupiadas estavam “Comanche”, “Cinco Minutos” e “O Homem da Gravata Florida” (todas faziam parte da tal coletânea by Mario Caldato). “Um amigo que mora nos EUA me mostrou esse disco no final do ano passado. Eu achei incrível, eram as minhas músicas, só que não há crédito no encarte do CD, e eu nunca fui consultado por eles”, disse Ben Jor ao jornal “Folha de S. Paulo”. O caso foi resolvido amigavelmente.
O currículo de Caldato inclui ainda trabalhos com Jack Johnson, Beck, Bjork e Blur, além dos brasileiros Marisa Monte, Nação Zumbi, Bebel Gilberto e Seu Jorge. Uma de suas principais qualidades como produtor é ajudar o artista a encontrar sua sonoridade. “Trabalhar com Mario é testemunhar o alcance e a capacidade de um produtor que preza pelo processo criativo através do talento do artista, interferindo em momentos cruciais para que o resultado seja concretizado com leveza e muita qualidade”, diz Pupillo, ex-baterista da Nação Zumbi, cujo “Fome de Tudo”(2007) contou com a ajuda do produtor. “Ele propôs da gente fazer um disco sem overdubs, mais cru e direto na sonoridade”, completa. “Eu não mudo a essência do artista, apenas trabalho para que ele aprimore o seu som”, diz Mario. Pupillo e Mario, aliás, estão trabalhando no disco solo do baterista, que deve chegar às plataformas de streaming em 2025.
A busca pelo som perfeito não necessariamente se traduz em horas e horas de estúdio. Muitas vezes, ela sai em meio à descontração. “No tempo em que trabalhei com os Beastie Boys, muitas vezes passamos dias jogando dominó e escutando músicas de nossa preferência –funk, soul music, hardcore. Quando a gente ia gravar, tinha essas referências para usar nas canções.”
O sucesso rendeu participações com os nomes anteriormente citados e a possibilidade de dizer “não” para quem ele não ache adequado. Ele já recusou pessoas famosas? “Sim”, responde, todo desconcertado. Mas não costuma recusar de cara. “A primeira coisa que faço é escutar a música, ver o que o artista está pensando. Se eu ouvir e achar que é um caminho confortável, que eu possa melhorar, eu aceito. Senão, encaminho para alguém com mais identidade com o projeto”, esquiva-se. Mas o Brasil sempre está entre as suas prioridades. Um dos projetos pelos quais guarda maior carinho é Other Side, ao lado de Seu Jorge, que dura pelo menos uma década. Caldato, o brasilianista, está escrevendo a história da MPB para além do olhar internacional.