Você está lendo
Lacraia desafiou o preconceito no funk e se tornou de símbolo de orgulho

Lacraia desafiou o preconceito no funk e se tornou de símbolo de orgulho

Ao lado de MC Serginho, a dançarina ajudou a popularizar o funk no Brasil

Avatar de Billboard Brasil
Design sem nome 99

“Vai Lacraia, vai Lacraia, vai Lacraia.” Para a nova geração, esse refrão talvez traga apenas a ideia de um animal peçonhento. Mas para quem realmente viveu os anos 2000, ele traz memórias de uma figura nostálgica:Lacraia (1977-2011), a dançarina que acompanhou MC Serginho na missão de tornar o funk palatável para o público brasileiro.

Há duas décadas, Marco Aurélio da Silva Rosa e Sérgio Braga Manhães, respectivamente Lacraia e MC Serginho, foram atrações dos principais programas de auditório do país, com hits como “Vai Lacraia” e “Eguinha Pocotó”.

VEJA TAMBÉM
Em maio, Duquesa lançou seu segundo álbum de estúdio 'Taurus Vol.2'

Os passos desengonçados da dançarina poderiam até soar caricatos para uma parcela do público. Para a comunidade LGBTQIA+, no entanto, era motivo de orgulho e representatividade. “Lacraia empoderou cada uma de nós com sua forma de dançar”, diz a cantora e drag queen Lia Clark.

Cria da favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, Lacraia foi cabeleireira, maquiadora, camareira e camelô. Porém, sempre quis ser artista. Na década de 1990, participou de um grupo de teatro amador. No mesmo período, fazia performances como drag queen com o codinome Volpi Jones, um tributo à diva jamaicana Grace Jones. Mas um encontro na quadra do Salgueiro, no início dos anos 2000, daria um novo rumo à sua vida.

MC Serginho, que também frequentava a escola de samba, era vizinho de Lacraia no Jacarezinho. Primo de Milton Manhães, produtor de Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho, entre outros, ele optou por um caminho contrário à tradição “sambística” da família. “Cambaleei para o funk”, brinca. Inicialmente o MC cantava proibidões, rimas que fazem apologia ao sexo e ao crime. O encontro com Lacraia, contudo, fez com que ele adotasse outra estratégia.

As letras sobre sexo quase explícito deram lugar a uma abordagem mais pueril –as crianças adoravam a dupla. Serginho, convenhamos, não é exatamente um poço de magnetismo. Cabia, então, à dançarina a função de chamar a atenção do público através de sua coreografia improvisada e seu inegável carisma.

O apelido surgiu como ofensa. Ela ameaçava “partir para a porrada” toda vez que alguém a chamava assim. Com o passar do tempo, o que era tomado como um insulto passou a ser seu nome artístico.

Lacraia e MC Serginho foram ao “Programa da Xuxa” e “Caldeirão do Huck”, da Globo, “Domingo Legal”, do SBT, e “Sabadaço”, da Bandeirantes. No dominical apresentado por Gugu Liberato (1959-2019), chegaram a ficar duas horas no ar, batendo o então hegemônico “Domingão do Faustão”. Naquela época, o funk estava migrando da periferia para as rádios e TVs. “O começo dos anos 2000 foi um período rico para o gênero”, explica Silvio Essinger, autor do livro “Batidão –Uma História do Funk”.

A alegria da dançarina contrastava com o preconceito que enfrentou nas emissoras. Ela foi vítima de transfobia e racismo por parte das produções desses programas. Num casamento de mentirinha promovido pela apresentadora Eliana, o noivo de Lacraia se recusou a beijá-la e a tratá-la no feminino. Rodrigo Faro, na infeliz ideia de homenagear a diva, pintou o rosto de preto, cometendo blackface, ato racista em que pessoas brancas usam maquiagem para se parecer com negras. 

Na frente das câmeras, Lacraia parecia aceitar o acinte. Mas no seu íntimo, jamais assimilou os golpes que levou. Aliás, em sua intimidade, nem de longe lembrava a figura esfuziante que brilhava nas telas. Numa entrevista de 2015, Maria Alice da Silva, mãe da dançarina, confessou que a filha ficava prostrada e em silêncio quando estava em casa.

O surgimento de Lacraia foi importante para uma comunidade que raramente tinha lugar de fala –e de dança. “Naquela época, não havia discussões sobre gênero e não víamos os LGBTQIA+ como ícones”, desabafa a cantora Lia Clark. E, se houve um tempo em que era sinônimo de xingamento, Lacraia hoje é motivo de orgulho. “Ela guerreou não apenas com seu nome, mas contra uma nação”, reforça Vita, do duo Irmãs de Pau.

No fim das contas, a vida de Lacraia faz jus às palavras de José Esteban Muñoz, escritor cubano e militante da causa queer: “Sujeitos minoritários nem sempre dançam porque estão felizes. Às vezes, eles dançam porque seus pés estão sendo alvos de balas”.

Disco de Ouro 130203 Moacyr dos Santos SBT 026 1
MC Serginho e Lacraia levaram o funk para milhares de brasileiros por meio da televisão (Moacyr dos Santos/SBT)

Lacraia se separou de Serginho em 2009. Tentou, sem sucesso, ser DJ. Os programas de TV, que tanto a cobiçavam, lhe viraram as costas. E a poderosa de tempos atrás era recebida por adjetivos como “bizarra” e “esquálida”. “O desinteresse midiático em uma figura pública tão popular causa estranheza”, diz a ativista, cineasta e pesquisadora Caia Coelho.

A dançarina se foi aos 33 anos, longe dos holofotes e sem glamour. Lacraia morreu no dia 10 de maio de 2011, no Hospital Gaffrée Guinle, na Tijuca, na zona norte do Rio, de causas não confirmadas. Mas sua importância para o empoderamento LGBTQIA+ jamais poderá ser ignorada.

“Lacraia é um marco na TV brasileira: um viado, preto, pobre que passou a fazer sucesso antes que qualquer homossexual aparecesse em novela”, disse a própria, em entrevista à escritora Adriana Carvalho Lopes. Vai, Lacraia!

Disco de Ouro 130203 Moacyr dos Santos SBT 031 1
Lacraia e MC Serginho marcaram a a memorias de muitos nos anos 2000.(Moacyr dos Santos/SBT)

Mynd8

Published by Mynd8 under license from Billboard Media, LLC, a subsidiary of Penske Media Corporation.
Publicado pela Mynd8 sob licença da Billboard Media, LLC, uma subsidiária da Penske Media Corporation.
Todos os direitos reservados. By Zwei Arts.