Jorge Aragão: ‘Nunca imaginei que ‘Identidade’ seria tema do movimento negro’
Cantor foi destaque da Billboard Brasil de dezembro


“Elevador é quase um templo/ Exemplo pra minar teu sono/ Sai desse compromisso/ Não vai no de serviço/ Se o social tem dono, não vai.”
Presente em “Identidade”, de Jorge Aragão, essa crítica social em ritmo de samba foi adotada como hino antirracista nas rodas de pagode. Mas, para seu autor, ela originalmente narrava apenas um episódio de racismo que aconteceu entre a rua Duque de Caxias e a alameda Barão de Limeira, no centro de São Paulo. “É uma das poucas músicas que eu lembro como escrevi, mas nunca imaginei que se tornaria tema de um movimento racial.”
Jorge Aragão da Cruz, 74 anos, é sambista raiz. Nasceu em Padre Miguel, zona oeste do Rio de Janeiro, de onde são também não apenas a escola de samba, mas Elza Soares e Mestre André, o inventor da “paradinha” da bateria.
Ele começou a carreira como guitarrista em casas noturnas, mas o chamado do samba foi mais forte. Em meados dos anos 1970, bandeou-se para o bloco carnavalesco Cacique de Ramos, que deu origem ao lendário Fundo de Quintal, grupo do qual chegou a fazer parte.
A carreira como compositor deslanchou em 1976, quando sua vizinha Elza gravou “Malandro”, que Aragão compôs ao lado de Jotabê. Depois, foi só alegria: vieram sucessos como “Vou Festejar” e “Coisinha do Pai”, ambos eternizados por Beth Carvalho, e “Papel de Pão”, com a qual ele estourou como intérprete.
Aragão é um sobrevivente.Aguentou firme os vai-e-vens de popularidade do samba e é um dos poucos que dialogam com todas as gerações. Sobreviveu ainda à Covid, que contraiu em 2021, e a um linfoma, diagnosticado em 2023. Abaixo, o sambista fala à Billboard Brasil sobre samba, racismo e os problemas de saúde pelos quais passou.
Você está curado do câncer?
Eu estou renascendo aos 74 anos, mas com um pouquinho de aprendizado. Renasci querendo compor, sabendo compor. O meu desejo agora é fazer música. Estou vivendo à beira do penhasco há muito tempo. Em 2002, abri o peito para fazer uma operação. Desde então, venho passando por várias questões. Vamos voltar à Covid-19. Quando recebo a notícia de que estou com a doença, penso: “Um homem, idoso, obeso, cardiopata”. Onde vou imaginar que vou superar? E superei. A mesma coisa com o câncer. Pensei que estava tudo perdido. O público não imagina a dor que é cantar em tratamento contra um câncer. Mas a vida é isso, não sabemos absolutamente nada sobre o amanhã.
Falando em fazer música, você idealizou um projeto com releitura de grandes sucessos com BK’, Xamã e Emicida, três nomes ligados ao rap.
Eu tenho a base fincada no samba pessoalmas não desci do morro nem sou cria de escola de samba. Eu tenho uma veia musical diversa. Recentemente, fui convidado para fazer uma música com o Xamã e fui tentar conhecer o mundo dessa galera, que tem milhões de seguidores e um público muito interessante.
E como se deu esse diálogo? O samba dialoga muito com o rap, você mesmo tem uma música chamada “Tape Deck”, que fala sobre isso.
Descobri uma forma nova de falar, de me comportar. Antigamente, por exemplo, chamávamos tudo de plágio, e aprendi sobre essa coisa de sample, que é uma homenagem, né? Muitas pessoas falavam que desde sempre ouviam meu som, que me têm como referência. Minha neta mostrou uma música do Baco Exu do Blues que usa um trecho de “Ontem” e fiquei muito feliz. E é incrível que estávamos tão perto e eu não sabia como eu era essa referência. Parece que eu não tenho nada a ver com eles, mas é incrível como nos damos bem.
Sendo um compositor de mão cheia, qual é sua avaliação sobre o momento atual das composições no Brasil?
Vivemos um momento de muita diversificação, algo que avalio como positivo. Antes, era algo muito segmentado: os compositores ficavam numa caixinha, compondo apenas para um ou outro gênero –sambista escrevia para sambista, sertanejo para sertanejo e por aí vai. Hoje, a diversidade é a regra. Outra coisa é que o compositor tem um diálogo maior com os artistas. O contato com as gravadoras e os escritórios é quase imediato. Não tem mais essa de colocar a música debaixo do braço e caçar um intérprete que se interesse por ela. Mas, falando especificamente do meu segmento, parece que se perdeu um pouco da essência. Se eu for escutar algo buscando aprender, dificilmente eu vou escutar samba.
O que seria essa essência?
Toda profissão tem uma cartilha. Eu não tenho absolutamente nada contra o novo, as mudanças. Mas temos uma cara, uma identidade própria. Vejo muita gente pegar referências internacionais, grupos que fazem protótipos de harmonias usadas lá fora.
Falta brasilidade no samba atual?
É exatamente isso.
Falando das suas composições que marcaram época. “Vou Festejar” é entoada nos estádios pelo Brasil e é sempre sucesso de público em todos os tipos de festa. Você imaginou um sucesso tão duradouro para uma música sobre revanche?
Olha, você escolheu uma música de muitas facetas. Nessa época, eu estava conhecendo o bloco Cacique de Ramos. Quando cheguei lá, quis fazer música com a levada do ambiente onde estava inserido. Especificamente sobre “Vou Festejar”, a letra é ruim, ela machuca, é pesada, mas talvez por isso mesmo tenha tido tantas Carnaval, em show, em estádio de futebol, até politicamente…
Já que você falou em política… “Identidade” é uma espécie de hino antirracista. Como nasceu essa canção? Você já esperava fazer da música um tema para discussão racial no Brasil?
Nunca imaginei que “Identidade” seria tema de um movimento. É uma das poucas músicas que me lembro exatamente como escrevi: estava na rua Duque de Caxias com a alameda Barão de Limeira, no centro de São Paulo. O produtor de um show me deixou num hotel e disse que voltaria com o dinheiro para me pagar. Já estava meio assim, porque ficou uma situação de ele me chamar de neguinho, o que até hoje quero pensar que não foi com maldade. Eu saí do Rio só com o dinheiro da ida. E eu fiquei dependendo do hotel para tudo: dormir, comer. Tudo. E eu estava preso ali, sem dinheiro para nada. Eu fui lá para trabalhar e fui tratado daquela forma. Mas, no final das contas, ele acabou me pagando. Escrevi totalmente inconsciente do que ela representa atualmente. Hoje, eu componho conscientemente. Não quero ser precursor de militância, mas percebi que não era só “Identidade” que tinha esse sentido político. Fui notar porque muitas pessoas me disseram: “Isso é tudo o que a gente precisava”.
Sua obra sempre teve um tom político. Mas, em 2018, houve um movimento para o posicionamento de artistas com relação à disputa presidencial entre Fernando Haddad e Jair Bolsonaro. Você foi acusado de simpatizar com o candidato Bolsonaro. Como você lidou com aquela pressão à época?
Com muita paz. Porque sei fazer música e cobro o que acho de direito por meio da minha arte. As pessoas pinçam qualquer coisa na internet. Por exemplo: eu gosto de seguir os presidentes da República e alguns políticos nas redes sociais. Daí eu sigo o Lula, e dizem que voto no Lula. Sigo o Bolsonaro, e dizem que voto no Bolsonaro. Ninguém se preocupa em me entender como cidadão, eu fico sujeito às interpretações.
Precisamos de uma representação negra no poder e não de um monte de gente branca dizendo que entende as mazelas pelas quais passamos. Eles não passaram por essa experiência de ser negro. E mais: precisamos muito dessa representatividade negra e feminina. Não é um determinismo meu, mas creio que falte isso. Hoje em dia, eu escrevo, mas não me cobro mais sobre isso. Antigamente, só tinha ao meu redor pessoas que gostavam de mim. Agora, existe a internet, as redes sociais, e estou exposto.
Você se considera poeta?
Não, não. Sempre rejeitei isso. Quando começam com esse negócio, quero desfazer.
Por quê?
Erroneamente, achava que o poeta tinha que ser uma pessoa estudada. Depois percebi que também pode ser uma pessoa vivida, que descreve as coisas do dia-a-dia e as coloca na rua. Eu consigo fazer isso. Falando de amor, por exemplo, consigo fazer isso. É como se tirasse uma foto, pegasse o negativo e escrevesse aquilo nos mínimos detalhes.
Mas isso não é ser poeta?
Eu acho pejorativo ser chamado de poeta. O que tem de mais em “Vou Festejar”, por exemplo, que você citou antes? Eu lia livros de bolso e tinha aquelas palavras complexas que ninguém entendia. Eu trabalho com o subjetivo, com palavras tranquilas. Não sou poeta. Definitivamente não sou.
E prestes a completar 50 anos de carreira, qual desejo falta realizar?
Meu filho, eu quero seguir compondo e cantando. Não tenho muito o que pedir para Deus. Eu quero escrever e cantar, só isso.