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Emanuelle Araújo disseca o disco de estreia de Jards Macalé

Emanuelle Araújo disseca o disco de estreia de Jards Macalé

'Um filósofo transcendental que rouba o meu coração chancela a minha rebeldia'

O cantor e compositor Jards Macalé, atração do Doce Maravilha (Rejane Zilles/Divulgação)

Eu me deparei com a obra de Jards Macalé  ainda adolescente. No início da minha carreira no teatro, um grande professor e diretor colocou “Soluços” na vitrola para que eu achasse a emoção certa de uma cena. Após receber o impacto desta canção, em meio a palavras ditas de um monólogo torto e absorta em lágrimas, perguntei: “O que é isso?!”

“Isto é Jards Macalé”, ele me disse.

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Não demorou muito para eu ter a minha primeira fita cassete de cabeceira de “Jards Macalé” célebre álbum que ele lançou em 1972 e que será tocado na íntegra do festival Doce Maravilha, que acontece em setembro no Rio de Janeiro. Gravada pelo meu amigo Marcus, que tinha coleções de vinil e gravava fitas mágicas para o meu “walkmenzinho” portátil. O percurso torto, poético, envolvente e potente do álbum, com todas as cadências quebradas, os elementos da bossa nova de João Gilberto, e da influência rock de Jimi Hendrix, me encheram de paixão.

O disco abre com “Farinha do desprezo”,  parceria antológica  de Jards e o grande poeta baiano Capinam.  Com a bateria  absurda de Tutty Moreno, o baixo inebriante e guitarras de Lanny Gordin e o violão preciso e original, absolutamente próprio do professor me fez cantar muitas vezes, em momentos diversos da minha trajetória. “Me joga fora que na água do balde/ Eu vou meimbora…”  “Revendo Amigos” (em dobradinha com “Vapor Barato”) me transportava para a irreverência e genialidade  da poesia de Waly Salomão. Me impactou tanto que comecei a ter fascínio por Jequié, cidade natal do poeta. Terra do meu primeiro namorado e pai da minha filha, Bruna.

“Mal secreto” é para mim uma das maiores canções da nossa música popular brasileiro. Aquele encontro perfeito de Jards e Waly com todas as suas inquietudes, angústias , belezas e maestria de unir verso e melodia de forma cinematográfica. Sim, vejo “Mal Secreto” como um belo filme. Com protagonista, roteiro, início, meio e fim. E imagens que aparecem claramente à primeira escuta .

“78 rotações”  foi a canção que me fez pensar: “Um dia vou gravar um álbum em homenagem ao Jards e cantar suas músicas.” Ideia que realizei muitos anos após, em 2018, com todo o meu petulante afeto (nota do redator: “Quero Viver sem Grilo: Uma Viagem a Jards Macalé” é um discaço que merece ser descoberto). Sorri baixinho quando cantei os versos de “78 Rotações” (“grave um disco devagar, grave um nome devagar…”) no estúdio em Bushwick, Brooklyn.

A parceria Jards e Capinam, aliás, se tornou outra doce obsessão minha a partir deste álbum. Passei a procurar letras de Capinam nos álbuns de outros artistas. “Movimento dos Barcos”, mais um fruto dessa dobradinha, sempre me fez chorar. Considero a interpretação do nosso professor, umas das mais lindas da nossa MPB . E isto é importante observar: o quão bonito é o canto de Jards Macalé neste álbum. Em muitos momentos da minha carreira pensei: “Como seria se o professor estivesse cantando esse verso…?”  Ah, o canto dos poetas é tão único, bonito e importante… 

“Meu amor me agarra/ E geme e treme e chora e mata”. Arrisco a dizer que é a minha música preferida do álbum. Soando como um mantra da caixinha de música do desabafo . 

Eu entendia no meu sentimento mais profundo o que seria ter um “amor que é um tigre de papel”, presente na letra. As melodias dedilhadas no violão do Jards me trazem emoções imensas toda vez que escuto . 

Não sou muito de drogas (digo isto com toda a hipocrisia atual de considerar meus tantos goles como algo fora desta cartilha). Porém, “Let’s Play That” é para mim a viagem de ácido que preciso em momentos diversos. O encontro perfeito deste trio magistral –Jards, Lanny Gordin e Tutty Moreno– atuando na parceria do mesmo Jards com o poeta Torquato Neto. Tenho as minhas canções escolhidas para “viagens lisérgicas de cara”: esta e  “I Want  You ( She’s so Heavy)”, dos Beatles, são as minhas prediletas.

Aaaah, Jards e Melô (Luiz Melodia). Não tive a chance de vê-los juntos, já que me tornei  amiga pessoal do professor só após o lançamento do meu álbum em sua homenagem, em 2020 . Porém, vivi momentos mágicos antes com Melodia, que para mim é o maior cantor da nossa MPB. A gente se conheceu na minha chegada ao Rio de Janeiro no início dos anos 2000 e nas muitas vivências junto à minha banda, Moinho, formada na Lapa. Foi amor ao primeiro copo. 

“Farrapo Humano” é aquele blues que te leva a imaginar esses caras (“Melô” e Macalé) juntos e enfrentando todas –que não eram poucas– daquela época dura e tão maravilhosamente criativa e musical. O professor sempre soube das coisas que fazia, queria e gravava. Jards Macalé, esse pisciano profundo teria que cantar “ A Morte” de Gilberto Gil

“Hotel das Estrelas” , parceria com Duda Machado, é a canção que fecha o álbum quase com aquele “happy sad end” perfeito. Ser uma “ estrela vulgar a vagar” faz Jards Macalé o filósofo musical transcendental que rouba o meu coração e chancela a minha rebeldia cheia de causas.

*Emanuelle Araújo é cantora, atriz e recentemente assumiu o papel de protagonista no musical “Clara Nunes: A Tal Guerreira”, que será encenado em Belo Horizonte e Rio de Janeiro nos meses de julho e agosto.

Emanuelle Araújo e seu ídolo, Jards Macalé (Divulgação)

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