De pai para filhos: como Gilberto Gil e herdeiros nos mostram o poder da música
"Tempo Rei", espetáculo do cantor e compositor baiano, eleva o nosso espírito


Os mais cínicos diriam que foi golpe baixo, feito para emocionar uma platéia que já estava entregue –e com isso transformar o Allianz Parque numa catarata de lágrimas. Mas quem conhece os personagens envolvidos sabe que eles não apenas se acostumaram a mostrar seu dia-a-dia para o público como também nunca apelaram para emoções baratas.
O que aconteceu: Gilberto Gil termina de cantar “Se Eu Quiser Falar com Deus”, oração que nos conecta com o divino e fala muito sobre aceitação. O “Pretinha”, que fala logo em seguida, soa como um sussurro. E Preta Gil entra em cena, amparada pela irmã Nara e pela cunhada Mariá Pinkusfeld, que atuam como backing vocal do cantor e compositor baiano.
A música que ambos cantam é, óbvio, “Drão”, que Gil escreveu para sua ex-mulher, Sandra Gadelha, mãe de Preta – um dos “grãos” desse relacionamento. “Drão” já tinha levado Preta às lágrimas quando Gil dedicou a canção para a filha no início da turnê “Tempo Rei”, no mês de março em Salvador. “Eu tenho vários vídeos que fiz do show hoje, mas escolhi esse pra postar pois fui pega de surpresa por meu pai Gilberto Gil que dedicou ‘Drão’ pra mim!!! Eu não sei explicar o que senti hoje, por hora eu só sei agradecer!!! Obrigada Pai por tudo!!!! Eu te amo !!!!”, escreveu ela, em suas redes sociais.
Certa feita, Moreno Veloso, ao cantor “Leãozinho” a pedidos de seu pai, Caetano Veloso, disse: “Não existe nada mais bonito que um filho atender ao pedido do pai.” Por outro lado, poucos momentos são tão belos quanto a interação de Gil com sua prole, uma prova irrefutável do amor de um pai por seus filhos. O final de “Drão” foi seguido pelo coro de “Preta! Preta!”, entoado pelo público do Allianz Parque. Gil foi às lágrimas durante e logo após a execução da música (caso você não tenha passado os últimos anos de sua vida em Marte, sabe que Preta desde 2023 enfrenta um câncer agressivo).
O amor do cantor e compositor baiano se estende aos outros membros de seu clã, que participam do show. Gil elogia os dotes musicais de Bem, guitarrista, baixista e diretor musical do espetáculo, que vai às lágrimas com o depoimento do pai. Saúda José, baterista, e lembra que ele toca o mesmo instrumento que o filho Pedro, morto em 1990. João, o neto mais velho, autor de solos psicodélicos de guitarra, também ganha seu quinhão de elogios. A presença dos netos do autor baiano durante “Punk de Periferia” também foi de uma beleza ímpar.
De volta à primeira frase dessa matéria, Gilberto Gil nunca foi dado a emoções baratas. “Tempo Rei” é a história de sua vida (profissional e pessoal), com direção artística exemplar de Rafael Dragaud e execução musical perfeita. É mostra de alguém que dedicou sua vida à deusa música e recebeu de volta o amor incondicional de quem se abriu ao seu canto –nesse caso, uma das platéias mais felizes e espiritualmente elevadas que pude presenciar em 35 anos de jornalismo.