Em setembro de 2023, o jornalista norte-americano Jann Wenner, que, entre outros feitos, fundou a revista “Rolling Stone”, lançou o livro “The Masters”. Um compilado das principais entrevistas que ele fez para a publicação, o livro traz nomes como John Lennon, Bono, Mick Jagger e Bruce Springsteen, além de outros ícones musicais. Mas quando um repórter do jornal “The New York Times” o questionou sobre a ausência de negros e mulheres na seleção, Wenner disse que não eram “articulados intelectualmente o suficiente” para fazer parte de sua lista. “Apenas por uma questão de relações públicas, talvez eu devesse ter ido e encontrado um artista negro e uma mulher para evitar críticas.”
É triste que um profissional como Wenner tenha se referido de maneira tão sórdida a dois grupos que passam por todo tipo de discriminação. Os negros, infelizmente, estão mais do que acostumados a essa infâmia. Em especial no universo do rock, gênero que criaram, porém foram relegados ao segundo plano. Seja nos Estados Unidos, onde essa música nasceu, ou no Brasil, a figura de pretos fazendo rock –e dos bons– ainda é capaz de causar estranheza em muita gente.
“A gente teve de batalhar para se firmar nesse estilo. As pessoas diziam que, como somos pretos, tínhamos de tocar pagode, reggae…”, diz Charles Gama, guitarrista e vocalista do Black Pantera. O trio surgiu há dez anos na cidade mineira de Uberaba e é uma das principais potências do cenário nacional. A especialidade de Charles, do baixista Chaene da Gama e do baterista Rodrigo “Pancho” Augusto está em trabalhar as mais diferentes vertentes do punk e do heavy metal. “Queríamos misturar todos os gêneros, mas sempre ressaltando essa característica mais pesada”, continua Charles. O Black Pantera tem quatro discos lançados e participou de grandes festivais no Brasil e no exterior –por exemplo, o Rock in Rio, o Lollapalooza e a edição francesa do Afropunk. Eles foram escalados para fazer a abertura das apresentações do Living Colour no país, no meio de outubro. “Era um moleque quando os conheci. Quatro negões fazendo aquele som brutal mexeu com a minha cabeça”, lembra Charles.
O Living Colour, a quem Charles se refere, é uma banda de músicos pretos. Formado em 1984 na cidade de Nova York por Vernon Reid (guitarra), Corey Glover (vocais), Will Calhoun (bateria) e Muzz Skillings (baixo, que em 1992 foi substituído por Doug Wimbish), o grupo faz um combinado de rock pesado com soul music, funk e rap. Reid, o guitarrista, tem preocupações que vão além do campo musical. É um dos criadores da Black Rock Coalition, coletivo que tem como missão ressaltar a cultura afro-americana na história do rock e ajudar os músicos negros –seja por meio de patrocínios até a busca por lugares onde cantores e bandas possam tocar.
As preocupações do guitarrista estão também expressas nas letras do grupo, que falam, entre outros temas, de racismo, política e gentrificação.
O rock preto brasileiro também tem por característica ser politizado, de combate. Os Inocentes, por exemplo, banda que nasceu no estouro do movimento punk dos anos 1970, tinha o afro-brasileiro Clemente como vocalista e letrista principal. Duas décadas atrás, o trio cuiabano Macaco Bong trazia um instrumental calcado no rock pesado e com discurso político afinado. Eles surgiram com o conceito “artista é igual a pedreiro”, ou seja, que tinha de se envolver em todos os processos produtivos, não apenas ir para o palco tocar.
O Black Pantera mantém o discurso afiado, muitas vezes tirando o exemplo de seus próprios lares. “Tradição”, single de trabalho de “Perpétuo”, mais recente lançamento do trio, foi inspirado no dia a dia da mãe de Charles, que trabalhava como doméstica. “Minha mãe tem hora pra chegar/ Mas não tem hora pra sair/ Mesmo sem força, sai pra trabalhar/ Um sorriso difícil de extinguir”, diz a letra. “É um retrato sobre a classe trabalhadora brasileira”, explica.
A ideia estapafúrdia de que o rock não seria território dos negros foi disseminada na origem do termo rock’n’roll. O blues migrou da região rural para os centros urbanos, eletrificou-se e passou a ser chamado de rhythm’n’blues. Quando começou a circular pelas plateias brancas e foi cantado por brancos, ele mudou de nome para rock’n’roll (gíria para o ato sexual). No caso do rock pesado, as influências do blues e do jazz deram lugar a uma nova sonoridade, por vezes baseada na música erudita.
Os negros, claro, continuam a trabalhar diferentes linguagens do rock, que vão do hardcore ao metal. Mas são preteridos –com raríssimas exceções– em favor de bandas com brancos em sua formação. O que explica bandas como Faith no More e Red Hot Chili Peppers serem mais populares do que Bad Brains e Fishbone, embora mexam no mesmo caldeirão sonoro. Mas sua atuação nessas frentes acaba por inspirar outros jovens negros. “Daqui a alguns anos poderão surgir bandas influenciadas na gente, assim como nos inspiramos em Bad Brains e Living Colour”, anima-se Charles. “A gente furou várias bolhas e mudou a rotina de toda banda de rock ter só gente de pele clara no palco”, completa o guitarrista. E vai conseguir ainda mais, visto o bom resultado nos discos e nos palcos.