Bambas mostram por que Carnaval do Rio segue contagiando e sacudindo a cidade
Alcione, Tia Surica e Neguinho da Beija-Flor estrelam capa da Billboard Brasil
A Cidade do Samba é uma espécie de Vila Olímpica do Carnaval. Em um espaço de 114 mil m² na região portuária do Rio, colas de samba concorrentes convivem diariamente, enquanto preparam alegorias e adereços. Inaugurado em 2006, o lugar reúne todos os 12 barracões das escolas do Grupo Especial. Nos dias 11 e 12 fevereiro, as agremiações cruzam o portão dessa singular cidade para desfilar, em busca da glória, na Marquês de Sapucaí, passarela do samba que completa 40 anos em 2024.
Conforme a folia se aproxima, o ritmo nos barracões acelera. Costureiras, escultores e soldadores formam um pequeno exército de profissionais que fazem o trabalho pesado para que as estrelas brilhem na avenida. Ali, na Cidade do Samba, Alcione, Neguinho da Beija-Flor e Tia Surica são cidadãos honorários e recebem o carinho de toda a comunidade. Embora defendam os pavilhões de Mangueira, Beija-Flor e Portela, respectivamente, os três bambas representam bem o espírito do Carnaval carioca.
No texto a seguir, Alcione, Neguinho e Tia Surica relembram episódios memoráveis dos desfiles, projetam a folia deste ano e mostram por que, no Rio, o ano é apenas um tedioso espaço de tempo entre dois Carnavais.
Alcione
Em 2024, Alcione será a Mangueira, e a Mangueira será Alcione. Após declinar convites para uma homenagem durante anos, a cantora enfim cedeu ao sonho antigo da comunidade e será o enredo da verde e rosa. Em “A Negra Voz do Amanhã”, a escola cantará a vida da estrela que “desembarcou num Rio antigo/ E, através dos discos, seguiu o sonho da canção/ Buscou a sua grande chance sendo o som das madrugadas/ Das turnês, clubes e baladas/ Até se tornar a Marrom”.
“Depois de 50 anos de Mangueira, não tinha mais condição de dizer não”, declara Alcione, em visita ao barracão. A cantora comemora, também neste ano, o cinquentenário de sua carreira. “A Mangueira sempre foi uma escola de muitas estrelas, e eu sempre achava que não era a minha vez. Agora é a hora. O samba é bonito, vai empolgar a galera.”
“A Mangueira sempre foi uma escola de muitas estrelas, e eu sempre achava que não era a minha vez. Agora é a hora.”
Apesar de ter nascido no Maranhão, a cantora de 76 anos tem uma antiga relação com o morro carioca. Ela conta que, ainda em São Luís, viu as fotos da ala das baianas mangueirense na revista “O Cruzeiro” e pediu que a mãe bordasse uma roupa verde e rosa para ela e para a irmã. Anos depois, quando chegou ao Rio, descobriu que o amor era recíproco. “Sempre tive curiosidade de conhecer aquele lugar mítico. Quando pisei na quadra da Mangueira, nunca mais saí de lá.”
A Estação Primeira costuma se sair bem quando homenageia gigantes da Música Popular Brasileira. Foi campeã com Bethânia (2016), Chico (1998), Caymmi (1986) e Braguinha (1984). O enredo deste ano ficou a cargo de Guilherme Estevão, Annik Salmon e Sthefanye Paz. A escola se apresenta na segunda-feira e será a quarta a desfilar. Alcione, por sua vez, encontrou fôlego para ser também a principal atração do camarote Rio Exxperience, onde se apresenta nos dois dias do Grupo Especial.
Na visita ao barracão, que a Billboard Brasil acompanhou, a homenageada conheceu o carro em que desfilará. Alcione conta que participou ativamente do processo de criação do desfile. “Eu gosto de vir aqui, e hoje não é a primeira vez. Mas, no dia de desfilar, eu deixo para ver o acabamento lá na hora.” Apesar da experiência acumulada, ela garante que ainda fica nervosa antes de desfilar. “Acho que o dia em que a gente perder esse sentimento, pode se aposentar. Quando a escola pisa na avenida e já agrada ao setor um, você entra confiante. Se tomar um ‘coió’, pode acreditar que não vai ser o seu dia.”
Tia Surica
A Portela vai para a Sapucaí após um decepcionante décimo lugar em 2023, quando cantou o seu centenário. Supersticiosa, Tia Surica argumenta que a escola foi fundada em abril de 1923 e, portanto, a homenagem em fevereiro aconteceu antes da hora, quando a azul e branco ainda tinha 99 anos. Para a lenda da agremiação de Madureira, o desfile dos cem anos será, de fato, o de agora. E ai de quem discordar.
Afinal, ela frequenta a quadra da Águia desde os quatro anos de idade e foi testemunha ocular de pelo menos oito das dez décadas da agremiação de Paulo, Manaceia, Candeia e Monarco. Iranette Ferreira Barcellos também escreveu a história: foi a primeira mulher a cantar sambas-enredo por lá, e é a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente de honra. “Antigamente, eu era discriminada na escola por ser mulher e na rua por ser negra e sambista. Hoje todos batem palma para mim.”
“Antigamente, eu era discriminada na escola por ser mulher e na rua por ser negra e sambista. Hoje todos batem palma para mim.”
Ao entrar no elevador do barracão da Portela, a matriarca de 83 anos ouviu de um funcionário que a escola neste ano iria voltar no desfile das campeãs, que acontece no sábado seguinte ao Carnaval e reúne as primeiras colocadas. A resposta da integrante da Velha Guarda foi rápida: “Meu filho, eu quero o título!”.
Saudosista, diz sentir falta do tempo em que os desfiles eram realizados nas ruas do centro da cidade, antes da inauguração da Marquês de Sapucaí. “Eu gostava mais da Presidente Vargas. Desfilei na Rio Branco, na Antônio Carlos também. O sambódromo, para mim, está bom”, diz, de maneira econômica.
O enredo portelense para 2024 se chama “Um Defeito de Cor” e foi baseado na obra homônima da autora Ana Maria Gonçalves. Sob responsabilidade da dupla de carnavalescos Antônio Gonzaga e André Rodrigues, a maior campeã do Carnaval carioca, com 22 títulos, vai contar a história de Luísa Mahin, uma ex-escravizada abolicionista que organizou levantes na província da Bahia. A escola de Oswaldo Cruz e Madureira será a segunda a se apresentar na segunda-feira, último dia de desfiles do Grupo Especial.
Neguinho da Beija-Flor
O que todos os 14 títulos da Beija-Flor de Nilópolis têm em comum? Neguinho da Beija-Flor foi o intérprete da escola em todas essas conquistas. Há 48 anos na agremiação da Baixada, Luiz Antônio Feliciano Marcondes é o cantor mais experiente do Carnaval ainda em atividade. Com um sorriso magnético, capaz de iluminar o barracão, o intérprete de 74 anos faz parte de uma geração que mudou os rumos da azul e branco.
A estreia de Neguinho, que vinha da escola Leão de Iguaçu, mostrou que a conexão estava escrita nas estrelas. Com o famoso enredo “Sonhar com Rei dá Leão”, uma homenagem ao jogo do bicho, a Beija-Flor levantou o seu primeiro título em 1976. Foi uma dupla vitória de Neguinho: como intérprete e como compositor –afinal, ele havia escrito o samba campeão. “Quebramos o tabu das grandes escolas”, lembra ele. Como em time que está ganhando não se mexe, nunca mais perdeu a posição.
Aquele enredo marcou também o desabrochar de um carnavalesco maranhense: Joãosinho Trinta (1933-2011). Com a voz de Neguinho e a criatividade de João, a Beija-Flor se firmou entre as grandes e se transformou na maior campeã da era Sapucaí. A dupla também estava junta no enredo “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”, de 1989, um dos mais emblemáticos do Carnaval carioca. Proibido pela igreja católica de usar uma estátua do Cristo Redentor, o carnavalesco cobriu a imagem com plástico e colocou uma faixa, onde se lia: “Mesmo proibido, rogai por nós!”. Acabou em segundo lugar, mas entrou para a história muito mais do que a campeã daquele ano, a Imperatriz Leopoldinense.
“Mesmo que você seja o melhor, vai ter uma fase da carreira em que você é questionado. E diziam que o Joãosinho estava ultrapassado, que só sabia fazer Carnaval com luxo. Aí ele fez um desfile completamente ao contrário. Provou que era realmente o bruxo do Carnaval”, diz Neguinho.
“Mesmo que você seja o melhor, vai ter uma fase da carreira em que você é questionado.”
Segunda escola a desfilar no domingo, a Beija-Flor leva à avenida o enredo “Um Delírio de Carnaval na Maceió de Rás Gonguila”, assinado pelo carnavalesco João Vitor Araújo. Na letra do samba, além das qualidades da capital alagoana, são exaltadas as lutas de Zumbi dos Palmares e também a cultura e a bravura das nações indígenas Tupi e Caeté.