Amaro Freitas, Jonathan Ferr e Cristian Budu popularizam novamente o piano no Br
Quando criança, o carioca Jonathan Ferr, de 37 anos, era fascinado por um programa de televisão chamado “Pianissimo”. Embora fosse um passatempo de seus pais, era Jonathan quem, embevecido, se emocionava com o toque elegante do pianista Pedrinho Mattar (1936-2007). Tempos depois, o rapaz de Madureira, zona norte do Rio, foi presenteado com seu primeiro teclado – que era de brinquedo, mas para ele tudo bem. “Minha vida mudou ali. Comecei a me dedicar a ele e a tocar umas músicas de forma auto- didata”, diz Jonathan, à Billboard Brasil. adquira a sua aqui.
Já o sonho do pernambucano Amaro Freitas, de 33 anos, era ser baterista. Ele até se candidatou ao posto de titular de peles, bumbos e pratos da igreja evangélica que costumava frequentar, na periferia do Recife. Mas como a concorrência era cruel, o pai de Amaro sugeriu que ele trocasse a percussão pelo piano. “Eu aceitei, e deu no que deu. Sorte a minha”, comenta. Jonathan e Amaro, dois jovens pretos de classe média baixa, são muito mais do que protagonistas do surrado conto do “menino pobre que chegou lá”: são referências do jazz moderno, cada qual no seu quadrado. O carioca envereda mais pelo pop, em simbioses com o afrobeat e o hip hop –representado em parcerias com a cantora Luedji Luna e o rapper Rashid. Neste ano, vai lançar um EP dedicado ao grupo santista de rock Charlie Brown Jr. “Sempre fui fã da banda e resolvi gravar duas canções que me tocaram muito. São o Nirvana da minha geração”, explica Jonathan.
Há também outro projeto, no qual toca ao lado da Orquestra Ouro Preto, e um material de composições inéditas, que por enquanto ele faz segredo em relação ao repertório.
Amaro Freitas, por seu turno, também trilha o caminho das combinações sonoras. Mas em seu caso, elas surgem de misturas com sonoridades orientais e africanas, expressas em discos como “Rasif ”, de 2018, e “Sankofa”, de 2021. “Os lugares por onde passo, as histórias que descubro… Tudo acaba sendo influência para minha música”, professa. “Y`Y”, mais recente lançamento do pernambucano, foi baseado na música dos povos indígenas do Norte do país. “Tive a sorte de estar na Amazônia e conhecer a comunidade indígena Sateré Mawé. Vi a grande conexão que os indígenas têm com a natureza e o encontro das águas, um dos fenômenos mais lindos dos nossos rios. Participei do ritual tomando o ouro guaraná do Amazônas. Percebi que estamos muito distantes desse Brasil”, comenta. “Nesse disco, ao mesmo tempo em que quero fazer um tributo aos rios e à floresta amazônica, também quero atenção ao nosso país.”
O paulista Cristian Budu, de 36 anos, tem uma biografia diferente da de Jonathan e Amaro, embora também seja de classe média baixa. Para começar, possui raízes europeias –seus pais são romenos e migraram para o Brasil a fim de escapar do ditador Nicolae Ceaucescu (1918- 1989). “Vieram com duas malas: uma trazia roupas e outra tinha livros, um violino e um clarinete”, diz. Ele também difere da dupla por ter escolhido o campo erudito, embora ame o cancioneiro popular. “Era fã de MPB e até de bandas de metal melódico”, entrega.
O jovem pianista nasceu e cresceu em Diadema, cidade da grande São Paulo, e a princípio queria ser jogador de futebol. O instrumento só entrou em sua vida na adolescência, quando seu pai ganhou um piano e colocou para decorar a sala. Budu deu as primeiras tamboriladas nas teclas e não parou mais: foi estudar com Elsa Klebanowski, ex-professora de Wilhelm Kempff (1895-1991), um os maiores especialistas em Beethoven de todos os tempos; fez bacharelado em música na USP (Universidade de São Paulo), ganhou bolsa de estudos em Boston, nos Estados Unidos, e por fim se sagrou vencedor, em 2013, do Clara Haskil, um dos mais renomados concursos de piano do mundo. Há dois meses, lançou “Pianolatria”, compilação de peças musicais brasileiras criadas para o piano.
Jonathan Ferr, Amaro Freitas e Cristian Budu estão, cada qual à sua maneira, desmontando a tese –ultrapassada, aliás– de que o piano seria um instrumento elitista. Ele faz muito mais parte da cultura brasileira do que se pensa e, por muito tempo, foi um artigo indispensável nas casas das famílias de classe média. Com o tempo, perdeu espaço para o violão e até mesmo para os toca-discos dos DJs. Mas segue fundamental. “Durante um bom tempo, o Brasil teve pessoas interessadas em ter piano em casa, uma cultura onde era legal mulheres tocarem piano”, explica Amaro Freitas.
Recife, a cidade natal de Amaro, foi por um tempo uma das maiores importadoras de piano do país. O instrumento, que chegou aqui no século 19, era tão popular que gerou uma casta de trabalhadores –os carregadores de piano do porto de Recife. Possuíam uma trilha sonora própria, por meio da qual reclamavam do peso do instrumento e alertavam sobre maus fregueses. Em 1938, os remanescentes dessa função foram descobertos pela Missão de Pesquisa Folclóricas, projeto do departamento de Cultura, idealizado pelo escritor Mário de Andrade (1893- 1945). As canções foram registradas em disco e traziam versos como “Dona Maria me enganou/ O pia- no ela não pagou/ O meu dinheiro ela não pagou.”
O aprendizado de Jonathan Ferr e Amaro Freitas, bem como a inserção e a consagração nesse universo, foi a duras penas. “Convenci meus pais a me colocarem numa aula de piano. Eu tinha uns 9 anos. Quando comecei a estudar com um professor, fiquei completamente apaixona- do pelo instrumento. Mas era de uma família muito humilde, do subúrbio carioca, ficou difícil para meus pais bancarem as aulas”, relembra Ferr. “Para evitar sair do curso de piano, eu trabalhava vendendo jornal, depois da escola. Também vendia água sanitária. Até que o professor descobriu e me deu bolsa. Depois disso, eu nunca mais parei. O amor realmente move a gente.”
Já o pernambucano se tornou pianista residente do Mingus, um restaurante localizado na praia de Boa Viagem, no Recife. Foi ali que desenvolveu seu estilo e aprimorou seus conheci- mentos em jazz –o gênero fazia parte do repertório predileto dos frequentadores do local.
A ascensão desse trio acaba por aproximar o piano de todas as classes sociais. As escolhas musicais dos instrumentistas, por certo, têm muito a ver com isso. Amaro, por exemplo, chega a incluir uma citação de “Asa Branca”, do mestre Luiz Gonzaga (1912-1989) em “Sonho Ancestral”, canção de seu último disco. “Ele tem influência do percussionista Naná Vasconcelos, que também era muito influenciado por Gonzaga”, diz. Ferr, por conta de seu formato de jazz com hip hop, tem uma abertura para o pop. E Cristian Budu tem por objetivo romper as barreiras do erudito e do popular. Para isso, se permite até algumas ousadias. “Na clipe da canção ‘Batuque’, de Lorenzo Fernandes, eu apareço num culto afro-brasileiro. Pedi até autorização para os orixás”, diz dele. “A gente tem que deixar de lado a ideia de que a música erudita é sisuda e impenetrável.”