Abre alas para elas: conheça as mulheres que são as vozes das avenidas no Carnaval
Uma ode às cantoras que tomam as passarelas do país vencendo o machismo
“O samba nasceu de uma mulher, e isso não pode ser apagado.” Teresa Cristina, nome célebre do gênero e a primeira voz feminina a gravar a tradicional vinheta da “Globeleza”, na TV Globo, em 2022, costuma reforçar isso em entrevistas. A história que a cantora carioca de 55 anos relembra é a de Tia Ciata. Sambista, mãe de santo, e cozinheira, Ciata viveu entre os anos 1899 e 1924 no Rio, então capital federal. Em sua casa, que resiste até hoje na região conhecida como Pequena África, na zona Portuária, ela abrigou artistas do gênero que eram marginalizados na época, afinal, o samba era proibido.
Desde então, nomes (femininos) como Clementina de Jesus, Alcione [uma das estrelas da capa de fevereiro da Billboard Brasil], Beth Carvalho, Clara Nunes e Dona Ivone Lara demarcaram o território com a potência que grandes mulheres trazem para a roda. No entanto, um segmento significativo desse universo passou muito tempo carente da presença feminina quando o assunto era o canto: as escolas de samba. Pode reparar: de quantos “puxadores” (ou intérpretes) de sambas-enredo você se lembra? E entre elas? Pois é.
Uma das primeiras a desafiar esse enredo foi Eliana de Lima. A paulistana de 62 anos se apaixonou pela música ainda criança, vendo a irmã e a mãe cantarem no coral da igreja. Aos 13, passou a trabalhar para ajudar a família e usava parte do salário para comprar discos de grandes nomes femininos do samba. Foi em 1979 que conheceu a escola de samba Cabeções, onde assistiu a uma mulher cantar junto da bateria pela primeira vez.
“Uma semana depois, voltei e falei que queria cantar um samba”, relembra Eliana em entrevista para a Billboard Brasil. Três meses depois, aos 19 anos, defendeu o samba-enredo vencedor da Príncipe Negro, em São Paulo. E, no ano seguinte, em 1981, estreou na avenida. “Foi fantástico. Chovia muito. Foi a primeira vez que vi tantas pessoas reunidas”, relembra. “Foi rápido entrar para uma escola de pequeno porte, mas foi difícil ir para uma escola de tradição, posto que nessa época a função era só para homens. Foi quando eu decidi lutar por isso.”
Em 1988, Eliana marcou época ao ir para a avenida Tiradentes ao lado de Jamelão (1913-2008), um dos mais importantes intérpretes do país, eternizado na Mangueira, no Rio. Juntos, cantaram o samba-enredo “Filhos de Mãe Preta”, da Unidos do Peruche. “O Carnaval para mim foi o primeiro degrau da fama”, entregou. Dito e feito. Além de se consagrar na avenida, atingiu sucesso nacional com a música “Desejo de Amar”, do LP “Fala de Amor”, de 1991. O hit pavimentou sua carreira como cantora, e ela segue se apresentando até hoje.
O pioneirismo de Eliana abriu alas para uma nova geração de cantoras que respiram o samba desde a infância. Wic Tavares, de 27 anos, de Duque de Caxias, na baixada fluminense, é uma delas. Wictória é filha de Wantuir Tavares, intérprete na Sapucaí há quase duas décadas. O cantor já passou por escolas como Unidos da Tijuca, Portela, e Porto da Pedra, para a qual retorna agora, após 25 anos. Já a mãe da cantora, Rosilene da Silva, foi passista e também já soltou a voz em escolas e em grupos de pagode nos anos 1990. “Minha relação com o samba vem de alma”, conta.
Depois de passar por outros setores da festa, Wic estreou na Sapucaí no Grupo Especial com apenas 17 anos, participando do carro de som da Inocentes de Belford Roxo. “Nunca tinha me imaginado em um carro de som. Não porque eu não almejasse aquilo. Mas porque achava muito difícil furar aquela bolha tão masculina”, revela.
Wic se recorda de terem abaixado o som de seu microfone de propósito, com a justificativa de que sua voz não se sobressaía por ser mulher. Essa prática também foi relatada por outras entrevistadas nesta reportagem. Apesar disso, foi vencedora com a Beija Flor em 2018 com o enredo “Monstro É Aquele que Não Sabe Amar (Os Filhos Abandonados da Pátria que os Pariu)” e, nos últimos dois anos, cantou junto a seu pai na Unidos da Tijuca.
Neste ano, volta a desfilar ao lado de Wantuir, na Porto da Pedra, atua como repórter no programa “Bom Dia Favela”, da Band, e lança suas primeiras músicas autorais produzidas por Prateado, que trabalha com Thiaguinho.
O samba também sempre pareceu o único destino possível para Lissandra Oliveira, de 50 anos. Sua família participou da fundação da Mocidade Independente de Padre Miguel, na zona oeste do Rio. Em 1985, ela criou, ao lado das irmãs, a ala coreografada com chocalhos cascavel, que viria a se tornar marca registrada da escola. Mais tarde, começou oficialmente no Carnaval como ritmista, coral e, depois, como puxadora, em 1999.
Desde então, nunca mais parou, passando por diversas escolas de samba dentro e fora do Rio. Neste ano, a cantora segue em sua escola do coração, e também no Salgueiro. “Não quero ser um enfeite [entre os cantores na avenida]. Quero que todos percebam que, no meio de todos aqueles homens, eu estou ali”, conta, enquanto reflete sobre sua carreira. “Eu já realizei o meu maior sonho, que era cantar na Marquês de Sapucaí. O samba não sai de mim, eu não quero que saia. E não vai sair nunca.”
Como não poderia ser diferente em um ambiente tão masculinizado, as cantoras das escolas formaram uma rede de apoio. Uma das relações mais frutíferas dessa ala é entre Millena Wainer e Lissandra, a quem a jovem chama de “madrinha”. A continuidade dessa inspiração é o maior objetivo da cantora carioca de 27 anos, que integra o carro de som da Mocidade e sonha em ser intérprete oficial.
Também nascida em uma família que respira samba, Millena lembra que seus colegas de natação pediam para que ela cantasse nos intervalos das aulas. Foi quando sua voz foi ouvida por integrantes da Portela que passavam por ali. A partir de então, com apenas 8 anos, começou sua carreira na escola mirim Filhos da Águia.
Hoje em dia, a cantora –que também é jornalista e pesquisadora e já dirigiu um documentário sobre as mulheres do samba como projeto de faculdade– enxerga como o apoio a esses núcleos mirins pode ser importante para um Carnaval com mais igualdade de gênero. “Meu próximo projeto se chama ‘A Voz das Crianças no Samba’. Estou conhecendo meninas que cantam nos carros de som mirins. Elas me relatam os desafios e sonhos, e eu acabo aconselhando, porque um dia já estive ali. Mais do que ser uma inspiração, não quero que elas se esqueçam das nossas ancestrais. Houve mulheres antes de mim que não desistiram para que eu estivesse aqui. Então, eu também não posso desistir”, conta.
Desistir do samba nunca foi uma opção para a paulista Grazzi Brasil, de 36 anos, que, diferentemente de suas contemporâneas entrevistadas para esta reportagem, não teve o Carnaval como berço, mas como salvação. “Sempre quis ser cantora. Comecei aos 13 anos numa banda de samba-rock. No entanto, aos 15, engravidei. As mulheres da minha família, de origem humilde, eram todas mães-solo como eu e me falaram que minha vida tinha acabado. Fiquei com vergonha e sumi”, relembra.
Foi resgatada pelos colegas de banda e voltou a cantar. Após perder seu segundo filho, passou a disputar sambas em escolas de São Paulo, começando pela Vai-Vai, e nunca mais parou. Grazzi também atua em musicais e canta fora da avenida. Há três anos é intérprete da Estrela do Terceiro Milênio, tradicional escola da região do Grajaú, na zona sul da cidade, fundada em 1998. Neste ano, eles desfilam pelo grupo de acesso do Carnaval paulistano. “Nunca imaginei que conseguiria chegar até aqui. Mesmo com as adversidades, nós, mulheres do Carnaval, ainda temos muito o que mostrar e o que cantar.”