Os versos escritos e cantados por MASKOTTE introduzem “Eu queria ter uma vida tranquila, mas as correrias não param” e anunciam “Notas”, canção surpreendente de 2023. A primeira gravação, em um estúdio de gravadora (com certa imponência de estúdio de gravadora para quem não grava diariamente em estúdio de gravadora), não deu muito certo e o MC de Belford Roxo cuspiu barras um tanto quadradas. ANTCONSTANTINO, um dos produtores da canção, relembra o episódio para arrebatar com uma imagem que é um pouco a biografia dele — e também de Pedro Chediak, seu par de produção em “Notas” e na Leigo Records, selo em que a dupla se ajunta e se ajuda.
“Eu já tinha a ideia [da produção] do refrão, mas eu não tenho tanta técnica para produzir… Mas eu sei como a música tem de soar!”, certifica. “A parada então era botar o Chediak para produzir”, diz referindo-se ao mineiro de Juiz de Fora que, além de ter um selo que hospeda novas tentativas de como o jungle, o drum and bass e o garage poderiam soar no Brasil de d0is e mil e vinte e tantos, é também um daqueles que entendem música por comunidade, como uma junção, como afinidade política — forma de pensar que opõe, para além da estrutura, as ideologias do mainstream e as do underground.
Juntando Duque de Caxias, Juiz de Fora, capoeira, emocore e pirataria, a dupla consolida-se como dois faróis de referência na cena de notas magras que é o underground eletrônico brasileiro.
Antônio, o ANTCONSTANTINO, tem uma pista de como isso tudo aconteceu e foi desaguar em uma trilogia — na qual “Notas” é o segundo volume, precedida por “BMW VOA“, que conta com os vocais em ragga de KBRUM. “Eu não tinha um FL [Fruit Loops, software usado na criação musical], eu não tinha um PC. Eu não sabia como ‘coisar’ aquilo ali”, introduz sem medo de biografar-se como um leigo que foi descobrindo tudo ao mesmo tempo. Esguio, Antônio tem uma fisionomia que denuncia alguém muito curioso, como se o corpo chegasse antes da fala. Quem esteve conectado ao rap nos últimos anos, viu Antônio rebobinar muitas vezes no Brasil Grime Show, programa que era (e é) um espécie de guia para quem queria ouvir grime sendo feito por aqui.
Pedro, o Chediak, é cinco anos mais novo que Antônio e foi crescendo em meio a artigos esportivos da loja do pai capoeirista, ouvindo a mãe cantora de samba, os videogames musicais produzidos pelo Daft Punk e keygens (aqueles programas que algumas pessoas — só algumas — usam para crackear softwares pagos). Nome forte do underground eletrônico após ter criado a festa “SPEEDTEST”, ele teve visões oníricas de rave. “Eu sonhei que eu estava em uma. Era um galpão assim um rolê meio warehouse, rave, sabe? Era uma festa gigante, brasileira, tocando, sei lá, DJ Marky”, conta. Ele só queria um lugar para fazer a festa perfeita, acabou criando um selo e encontrando em Antônio alguém que acredita na colaboração como forma de superar a rave de vacas magras que é o baixo-clero da música eletrônica brasileira. Da segunda edição pra frente, Pedro já tinha o apoio de Marcelinho da Lua e levando o próprio DJ Marky para tocar. “Eu vejo uma comunidade, vai criando toda uma cultura. Eu me sinto muito um arquiteto junto com o Antônio. Estamos criando um lugar para as pessoas criarem. Cada um traz referências e a gente vai aprendendo junto”.
DJ = pedreiro
Mais do que arquitetos, ambos são pedreiros de uma cena que caminha com dificuldade para expandir-se. De cabeça feita também no reggae (e nas variações possíveis do ritmo, como o dub e o dancehall), Antônio vai agora sendo reconhecido internacionalmente. No ano passado, a NTS Radio, de Londres e com mais de dois milhões de ouvintes, incluiu-o como um dos DJs residentes.
Mensalmente, ele dispara faixas não lançadas, reggae, piadinhas e pancadas com direito a foto de sua mãe Lilian, uma das responsáveis pela carreira do filho. “Não tenho pai. Sei o nome dele, mas não importa. Agora que eu tô andando, não vou botar o nome dele nas coisas. Sou filho de Dona Lilian. É a única coisa que importa”, diz citando a matriarca que, simpática, falastrona e aberta, recebia os amigos doidos do filho, fossem eles do hardcore ou do rap. “Ela é sinistra, mano. Eu vejo meu trampo como uma parada para conseguir melhorar a nossa vida, em geral”, conta revelando, de alguma forma, uma relação saudável e de admiração mútua que fez Antônio transformar vários cachês e grana que pingavam em reformas na casa da mãe.
Mas foi também o tio Fernando um nome importante nessa correria, dando uma amenizada na ausência parental e, de quebra, trazendo o rock pra vida de Antônio por meio de pílulas biográficas do Kiss, do Ozzy e que culminariam no sobrinho como um dos frequentadores dos eventos de Luciano Paz e da produtora Toma Rock Produções, que transformaram-se em plataforma para quem queria bater cabeça em Caxias. De quebra, Antônio também foi transformado. Passou a conhecer o straight edge (subgênero do hardcore punk cujo os versos “eu não bebo, eu não fumo, eu não me drogo – pelo menos eu consigo pensar, porra!”, do Minor Threat, resumem um pouco), virou vegano e, hoje, é um elogiado chef da cozinha cotidiana e amadora. Mas, antes da comida, ele tava querendo ouvir mais coisas.
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Aprendiz de Luciano, Antônio criou sua própria festa. Depois do hardcore e do emo, o muro do rap estava baixo. “Não tinha festa de música eletrônica ou rap em Caxias. Não tem até hoje: 99% foi a gente que fez”, explica citando o nascimento da “WAVES.DDC”, criada com o parceiro Diogo Queiroz, que daria vazão à carreira de DJ e produtor e, mais tarde, ao selo Leigo Records.
“Há 10 anos atrás, não tinha nada por aí desse som que o Antônio ou o Chediak fazem. Éramos dois moleques querendo fazer um rolê punk ou hardcore. A gente sugou muito desse rolê. Como agir e como fazer as coisas acontecerem. O Antônio sempre quis ser artista. Eu, não. Eu sempre quis trabalhar com música, fazer a arte rodar”, explica o operário Diogo, hoje produtor na Leigo. “Eu considero o Chediak um gênio, tá ligado? Quando ele veio com a ideia da SPEEDTEST, eu falei ‘mano, vamos fazer’. Eu já estava acostumado a fazer a parada do jeito que dava pra fazer. E, a partir daí, não paramos de trabalhar juntos”.
O veto do pai capoeirista e a bronca do Maffalda
Antônio conheceria Pedro Chediak, pelo Facebook, só pelas bandas do final da década de 2010. Fisicamente, se encontrariam em 2021 para confeccionarem o EP “Ameaça Detectada”, de Bruno Kroz. “Hoje a gente tem alguma estrutura, mas eu não tinha nada. Ele [o Pedro Chediak] falou ‘mano, vem pra minha casa e a gente mixa esse EP. E ele deu sorte porque, particularmente, eu cozinho muito bem. Eu fazia a gente economizar no iFood e ele na mix. Elas por elas. Ele mexe nas minhas músicas, eu mexo nas dele. Virou tudo uma coisa só”, explica o carioca.
Muito antes disso, Pedro era um moleque que estava crescendo fascinado com a trilha sonora de “Tron: o Legado“, feita pelo Daft Punk e com as músicas doidas que tocavam nos keygen.exe (que funcionam para quebrar a proteção de programas pagos). Apesar do sobrenome Chediak ter no pesquisador musical Almir Chediak seu representante mais famoso, a casa de Pedro era feita no samba e capoeira. Seu pai Adriano era dono de uma loja de artigos esportivos e de uma revista especializada no jogo africano. Sua mãe, Carolina Soares, possui três álbuns dedicados à capoeira. Mas o gingado de Pedro era menos no quadril, um pouco mais desenvolto na edição de vídeo.
Talvez, isso explique o choque do pai quando viu que o filho estava metido em ambiente (virtual) de música. E era um batuque estranho e, ademais, cheio de palavrão, em uma linguagem fragmentada e remixada. “Eu devia ter uns 12, 13 anos, papeando em uma grupo de editores de vídeo no Skype”, introduz o produtor que também é editor de vídeo e 3D e, por isso, enxerga suas músicas como algo muito visual, o que explica um pouco da estética de sua produção. “Alguém mandou o Soundcloud do Maffalda. Não entendi nada. Era outra linguagem, muito crua e com refs que eu não sacava”, explica. A música em questão era um remix dubstep de Maffalda para “Lata D’água”, eternizada na voz da cantora Marlene.
O tal do Maffalda é Arthur Gomes, hoje referência mór de todos os produtores que circulam no underground e no midstream da eletrônica. Além de tudo, é um dos responsáveis pela discografia milionária (de views, de streams, de tudo) de Pabllo Vittar.
“Eu peguei esse áudio, abri o editor de vídeo e fiz um lyric video de 30 segundos. Até que um dia chega uma mensagem do Maffalda: ‘cadê o crédito, seu comédia?’ Foi assim que começamos a conversar. Na época, para mim, aquilo que ele fazia era humor. Eu não relacionava aquilo com música, sabe? A primeira vez que eu vi aquilo acontecendo foi com o Maffalda”, explica. A “bronca” virou amizade e convites para que Chediak aprendesse mais de produção musical e, também, começasse a se apresentar como DJ.
Com isso tudo explicado, fica fácil entender o cenário dos sonhos que Chediak vislumbrava para a “SPEEDTEST RAVE”: se colaborativa na mão de obra, também na estética musical. “E a gente vê o resultado disso na pista, com as pessoas respondendo a um tipo de música que soa como novidade. Tem muita gente que entende mais a fundo e sabe da parada. Mas tem quem esteja ouvindo pela primeira vez e achando o máximo, sabe? O drum and bass, o jungle… E, ao mesmo tempo, vê a gente misturar isso com funk, com psy trance, com tecnobrega…”, conceitua o produtor que, como mostra o post abaixo, assim como o DJ Ramemes (e muitos outros) tiverem o clique da música eletrônica (e de pirataria) após um show do Skrillex.
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