Uma história de Natal (e de dorama) revelada na calçada pelo kpop do TWICE
Jean e Marcela não se conheciam. Agora, estão eternizados um na memória do outro
O grupo sul-coreano TWICE realizou sua primeira apresentação no Allianz Parque, em São Paulo, na última terça-feira (6). Se a fila centopéica revelava a ansiedade dos “once” (como são chamados os fãs de Nayeon, Jeongyeon, Momo, Sana, Jihyo, Mina, Dahyun, Chaeyoung e Tzuyu), também deixou rastros de pais e responsáveis espalhados pelas calçadas do estádio.
Segurando uma fotografia do grupo e vestido com o manto do Flamengo, o taxista Jean Lago, de 43 anos, avisa logo à reportagem que não queria posar pra foto segurando o item de fã. “Isso [a fotografia do grupo New Jeans, outra sensação do kpop] não é meu, estou só segurando para umas pessoas que já entraram”. Ele veio do Rio de Janeiro de carro, na madrugada da terça, para levar sua filha Alice Frias para o show. Ele acabou servindo de referência para várias outras fãs que, na impossibilidade de entrarem com bolsas e quinquilharias, confiaram no carioca de Duque de Caxias a missão de chapelaria.
Ao lado de Jean, também no chão cheio de mochilas alheias, sentava-se Marcela Nascimento, de 42 anos. Pernambucana, ela veio de avião para a capital paulista para fazer sua filha, Maria Luiza, a Malu, de 16 anos, encontrar-se com a música de um dos fenômenos do kpop.
“A gente se conheceu aqui”, introduz a recifense que, logo depois, também revelaria que dias atrás, tudo havia mudado em sua vida. “A gente tava com tudo marcado, compramos ingresso e, er…, passagens e aí…”, tentou continuar contando. Mas as lágrimas já estavam por todo o rosto.
Jean já sabia da história. Desde que se conheceram na fila, trocaram relatos e, principalmente, mensagens de carinho e conforto em um ambiente dominado pelos sentimentos que faz o kpop ser amado pela horda de fãs: a empatia, o amor próprio e a felicidade de ser livre. Por isso, enquanto Marcela desaba em lágrimas, Jean já está com a mão em suas costas.
“Meu marido morreu no dia 25 de dezembro. E acabou que eu não ia vir. É tudo muito recente. Mas por ela, eu vim”, revela a mãe de Malu que, àquela altura, já curtia em êxtase o show dentro do Allianz Parque. “Eu fico emocionada. É bem especial estar aqui, estar por ela, pensando nele. Ele era muito animado, muito divertido. E a gente entrava muito na onda dela, sabe? Assistia dorama [produções sul-coreanas dramatizadas, que conquistaram o mundo do streaming nos últimos anos], tudo junto. É bem difícil estar aqui. Mas, assim, é por ela. E por ele”.
A perda impactante, na noite de natal, de Marcela e Malu ainda tinha mais um capítulo a ser revelado, ali, no chão do Allianz. A pernambucana, formada em engenharia de pesca (e que nos ensinou muito sobre tilápias e camarões africanos), não sabia mas o taxista ao seu lado era mais do que um flamenguista de humor fanfarrão. Jean guardava também muitas mochilas e uma cadeira de praia (nenhum dos ítens era seu, mas sim de pessoas que confiaram nele como protetor de pertences do lado de fora do estádio). Mas também guardava um detalhe biográfico de sua filha, deixando aquele encontro com cara mesmo de um roteiro de dorama.
Sua filha Alice é atriz. Sua personagem é um dos destaques da comédia “Minha Mãe É Uma Peça 3”, último ato da trilogia criada pelo ator Paulo Gustavo e que conta a história de uma família comandada pela dona de casa Hermínia.
Esse terceiro filme, no qual Alice interpreta a personagem Marcelina em sua versão criança, era a coqueluche de um pai e de uma filha, em Recife. “Tinha vezes que eu já não aguentava mais, era esse filme o dia inteiro”, revela Marcela, ainda um tanto surpresa com a coincidência de estar ali naquela calçada lotada de pais à espera de filhos que surgiriam sorridentes e realizados pela energia das coreografias perfeitamente executadas pelo TWICE dentro do estádio. Naquela calçada onde, mais uma vez, encontrou-se com seu marido, Nianderson Ferreira de Melo, que deixou a família aos 42 anos, naquele dia de natal.
“Olha, essa noite vai ficar marcada na minha vida”, se despediu Marcela após receber o abraço de uma Malu que ensinou a mãe a ser fã do gênero a ponto da própria se intitular “army”, como são chamados os fãs de BTS, o maior grupo do gênero — antes, o grupo predileto da filha.
Quarenta e quatro dias (e quase três mil quilômetros) de distância do pior dia de suas vidas, Marcela encontrou ali, por causa do TWICE e do kpop, mais uma chance de celebrar a fé nos desconhecidos e a lembrança de quem, em vida, dançou e cantou coreano só para ver a filha feliz.