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Péricles, o cantor feito para durar

Péricles, o cantor feito para durar

Sambista, capa da Billboard Brasil, é exemplo raro de carreira longa no pagode

Péricles na capa da Billboard Brasil

É difícil entender o que perturba Péricles. Alguns amigos que o viram montando roda de samba em uma sorveteria no ABC paulista dizem que ele estava feliz, rindo. Quem estava no seu lado naquelas rodas nuéris de Santo André ou já era da família (caso do irmão Breno Faria, que tocaria no Katinguelê) ou viraria parceiro de vida (caso do irmão de vida Izaias Marcelo, com quem dividiu composições no “Exaltasamba”).

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São poucos os filhos artísticos dos anos 1980 que desfrutam uma carreira protagonista no meio brasileiro contemporâneo, como Jorge Aragão, Lulu Santos, Marisa Monte. Por isso, e também pelo semblante amistoso, fica difícil também não querer conversar com Péricles para entender como ele vê tudo isso.

Ele chega manso ao almoço que antecede a sessão de fotos em que seria modelo para a capa desta edição da Billboard Brasil. Quase silencioso. Alguém pergunta se ele descansou onde e retomou o dia. O cantor e a resposta é meio malandra-simpática: “Isso a gente vai resolvendo… É pra depois”. Ele estava no Rio de Janeiro desfrutando da companhia de Mauro Diniz, um dos seus ídolos na música, que comemorava 50 anos de carreira. “Me impressiona como ele ainda estuda o samba, a música. Quero ser assim mesmo”, disse, comentando os efeitos da noite passada ao lado do compositor de um sem número de canções do Fundo de Quintal, todas decoradas pelas mãos de banjo do fã. Segundo Izaias, amigo-irmão-produtor, Péricles é um grande nerd.

“Ele sabe tudo de música. Tudo. Coleciona sempre tudo, e carrega e armazena tudo no HD, na cabeça”, conta. Foi com Izaias que Péricles experimentou alguns passos no pagode. Primeiro, no grupo Sorriso Novo. “Eu tive um filho e parei de tocar. Mas a sensação de que eu não era mais aquele sambista me incomodava. Lidiane já me puxando para o samba”, conta. Então, Péricles o convidou para embarcar no “Exaltasamba”. Neste grupo, um dos mais respeitados da história da música popular, a partir do auge do final dos anos 1980, a dupla experimentou (“subliminarmente”, diz Izaias) uma fusão do pagode carioca com o soul dos R&B norte-americano. A fórmula já vinha da obra do carioca Jorge Aragão, mas foi em São Paulo que o bicho pegou. Virou um gênero comercial: primeiro, “pagode romântico”, depois, simplesmente pagode.

Paizão

Péricles é gentil. Sua equipe usa “cantor” como pessoa de tratamento. Ele mexe a cabeça devagar, acolhe o chamado. Em 2002, assistindo a um reality show chinfrim da TV Globo, saiu do sério. “Não é possível!”. Amargurado ao ver um quadro no qual o sambista era sumariamente sendo escolhido para sair do “Fama”, uma casa de talentos musicais — o programa era uma espécie de Big Brother da música.

“Chega. Não vou ver mais essa porcaria”, disse. Naquele mesmo ano, uma das vozes de mel do “Exalta” e do pagode anunciaria a saída do grupo. Era uma rotina naquele pagode e o “Exaltasamba” perdia Chrigor. Uma década antes, em um restaurante no Rio de Janeiro, Péricles foi abordado por um casal. “Toda vez eu me arrepio com essa história. Toda vez. Toda vez”, ele diz. João Barbosa e Glória Maria eram pais corujas de um Thiago André que antes da fama e do “Fama” já cantava e tocava em um grupo de pagode.

— Oi, tudo bom, Péricles? Meu filho é pagodeiro. Ele não está aqui, mas ele com certeza ia te pedir um autógrafo.

— Claro. Qual nome dele?

— Thiago.

— Vamos tirar uma foto?

— Vamos!

Voltamos à década de 2000. Estamos em 2003, mais precisamente no dia 8 de janeiro, um dia depois da saída de Chrigor do grupo e da eliminação de Thiaguinho do “Fama”. Este último, então, seria escolhido como o substituto e pronto para estrear como cantor do “Exaltasamba”.

“Tentávamos um nome parecido, do mesmo tamanho”, descreve Péricles. “Eu vejo uma pessoa e começo a perguntar: ‘Não foi o senhor que me abordou em um restaurante no Rio, me pedindo autógrafo?'”. A ficha de Péricles estava prestes a cair: Apontando para Thiaguinho, o cantor pergunta estupefato: “O seu filho é ELE?”. Era.

Passado o susto da coincidência, Péricles fez algo que sabe bem: acolheu. O tal Thiago André virou um senhor doutor honoris causa no gênero e tornou-se um dos maiores nomes do pop brasileiro muito pelo espaço em que teve para experimentar uma célula de R&B ungido pelo pandeiro, repique e arranjos de Wilson Prateado. O ídolo reconhece:

“Eu tenho no Péricles uma figura de O Rei da Voz e o Rei do Pop: LP “Off The Wall” (1979), de Michael Jackson, considerado um dos álbuns com a engenharia do áudio mais precisa e impecável da história da música. A obra, produzida por Quincy Jones, é um padrão de excelência em R&B, Disco e Pop. referência, uma pessoa serena e que eu já admirava há muito tempo. Quando eu chego no Exalta, eu me coloco no papel de absorver todos os ensinamentos que ele trouxe para o convívio. Ele se tornou a pessoa que me acolheu, me orientava profissionalmente e dava conselhos. Ainda tive o privilégio de encontrar nele uma amizade verdadeira que dura até hoje”, diz o hoje conhecido por “Tardezinha“.

“Foi um momento muito delicado”, diz Péricles ao recobrar aquele “Exaltasamba” pós-Chrigor. A chegada de Thiaguinho foi, no entanto, uma renovação da história do grupo e também de uma nova guinada do pagode à sonoridade do pop negro. Se no final dos anos 1980 o som a ser seguido era o charme e o suingue de produções que vinham da lavra de Quincy Jones e Maurice White (Earth, Wind & Fire), a dupla Thiaguinho e Péricles ajudaria na atualização do repertório contemporâneo do grupo.

“O Péricles nunca foi o cantor principal. Ele foi se desenvolvendo. Com o tempo, nos acostumamos a vê-lo passar uma música e todo mundo ficar impressionado. Aí, ele dizia ‘Não cantei ainda, estava só aquecendo’. Ele podia cantar sozinho. Mas o “Exalta” sempre foi um grupo de dois vocalistas, e assim entendemos que deveria ser naquela fase também”, diz Pinha Presidente, outro amigo-irmão que o pagode costurou.

Péricles (Jordan Vilas/Billboard Brasil)
Péricles (Jordan Vilas/Billboard Brasil)

Parceiro do cantor no “Exalta”, Pinha ainda carregou o nome do grupo após a saída dos dois tenores. “Eu senti muito porque estava desde a primeira formação. Mas não tinha outro caminho”.

Pinha desenha uma cena que explica um pouco desse “paizão” Péricles. “Quando o Péricles começou forte na carreira solo, ele me convidou para integrar a banda. Eu, como, sabia que meu lugar não era mais de artista principal, mas sim de apoio”, começa. Na primeira viagem à trabalho, já integrado ao time, Pinha pegou a van que conduziria os músicos ao show. Péricles interveio. “Não, você vem aqui”, disse chamando Pinha para a principal. “A gente viveu juntos e vivemos também tudo o que conquistamos. Essas coisas mostram a grandeza dele”, conta.

A personalidade de Péricles faz com que sua postura seja de reverência. Pinha relembra dois episódios. Um foi na casa de Lico, venceu uma embaixada com o Bruno Coimbra [ex-vocalista do grupo Só No Sapatinho], filho dele. Em um churrasco, quem veio nos servir foi o próprio dono da casa. “O Péricles me cutucou assustado: ‘NÓIS'”. O outro momento foi em São Paulo, junto aos ídolos do Fundo de Quintal. Convidados para subirem ao palco do grupo que revolucionou o samba e instituiu o pagode a partir da década de 1970, Péricles parecia incrédulo ao perceber que iria tocar com os mesmos instrumentos dos bambas. “Você tem noção?”, repetia incrédulo o cantor, com o banjo que Almir Guineto adaptou para o gênero e que, depois, foi ostentado por Bira Presidente.

Antes de entrar no “Exalta” e se tornar esse “paizão”, Péricles foi inspetor de alunos metalúrgico, sapateiro. Cortava cabelo também. Mas a voz barítono médio-grave acabou comovendo-o e o público, angariando amigos que se converteram em fãs pelo caminho. “Era um privilégio poder parar nas turnês, nos quartos de hotéis, e ver os dois cantando madrugada adentro, ih, uma pancada de coisa. Eu só admirava. Ia fazer o quê? Era sorte nossa”, diz Pinha.

Caminhando (nem tanto) só…

Péricles e “Exaltasamba” não fugiram de um expediente do pagode: a separação. Desde o nascimento do gênero, lá nos anos 1980 com o auge do Fundo de Quintal, a história de grupo e integrantes quase sempre era um “chegamos ao fim”. Fossem brigas, a dinâmica seguiu a mesma, sem novidades.

Mas o vai ou racha do “Exaltasamba” logo após os festejos de 25 anos do grupo tinham sabores concretos e duros dos pincipais vocalistas do pagode em 2011.

Enquanto Thiaguinho continuou a fórmula de sucesso com o parceiro Rodriguinho, misturando o “pagodjé” com R&B dos anos 2000, culminando no lema “ousadia e alegria”, Péricles assumiu uma beca elegante, evocando o samba e o pagode carioca (ele com soul junto aos ouvidos semelhantes), ora com supra sumo ao “Amor”, sucesso do grupo Pique Novo.

“Naquela época, eu tinha a sensação de que eu precisava ter essa experiência, de gravar um álbum como o Sensações, homenageando meus parceiros, meus contemporâneos, figuras que contribuíram para este grande pagode, como o Prateado”, explica Péricles.

Não demorou para os dois caírem na graça do mundo pop como cantores solo, mas Péricles incorporou coreografias e uma elegância black music nos shows com standards como “Stand By Me”, sendo requisitado por divas e divos pop como Ludmilla, Ferrugem, Hariel, Livinho, Rael. Mas se Thiaguinho construiu o empreendimento chamado “Tardezinha”, havia a sensação de que Péricles podia ter mais que carisma, discografia e bons convites. Repetindo uma história comum na música, foi uma personagem feminina e afetiva que viabilizou mais valor e merchandising.

Péricles e a pernambucana Lidiane se casaram em 2017, em uma cerimônia que reuniu a nata do pagode nacional em Recife. O caso de amor, que levantou a autoestima do negrão, também seria fundamental para a carreira do pagodeiro: Péricles deixaria a sua antiga produtora, a Inovashow, e teria uma autogestão com a Farias Produções Artísticas.

Enxergando o marido “meio pra baixo”, sem vontade de cantar, Lidiane achou uma nova identidade para o marido e as coisas guinaram: virou jurado do “The Voice Brasil”, faz publicidade, e ativo nas redes sociais e, mais importante, se firmou também como uma voz em prol da diversidade da cultura negra nos meios de comunicação.

“O Péricles estava depressivo, não acreditava nele, na carreira, fazia show sentado. Era algo mecânico. Ele fazia, pois tinha uma família para cuidar. Eu falei: ‘Você é capaz e é muito melhor que isso. Ele precisava se amar e entender o próprio potencial'”, diz Lidiane.

Sair de uma produtora especializada no gênero, que tem mapeada todas as casas de shows e contratantes do país e conexões importantes para construção de carreira, para cuidar de todos os meandros de uma carreira artística, soava como loucura. Ainda mais para quem tinha tanto tempo de estrada — e tanto a perder. Hoje, nove em cada 10 nomes de sucesso do pagode cuidam da própria carreira. E quem não cuida, cancela isso.

“Foi a coisa mais acertada que eu fiz. As experiências que tive não foram legais. A gente vive hoje um momento em que o artista tem de pôr a mão na massa, tem que ser mais um CEO na engrenagem. A opinião dele tem de ter peso dentro do trabalho. Racionais MCs, Anitta, Laboratório Fantasma são empresas que deram certo. E tudo isso foi muito pelo ‘vamos’ da Lidiane. Foi a coragem dela que fez tudo isso ser mais fácil”, retribui.

Completando 40 anos de carreira em breve, o cantor leva tudo isso e, mesmo assim, continua: é respeitado como crooner e compositor, faz o circuito de festivais com seu show mais pop e, ao mesmo tempo, percorre o país com sua roda “Pagode do Pericão”. O jeitão continua o mesmo: sereno. “Só não sou assim quando acordo”, faz a ressalva. Mas o remédio tem sido orar, escutar “Three Little Birds”, de Bob Marley, agradecer e cantar.

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