Paulete Lindacelva: ‘Não nos penalize pela sua falta de alcance’
DJ multiartista analisa a house music e certa parte do público


Paulete Lindacelva está no Centro de São Paulo quando atende nossa ligação. Pernambucana, ela foi responsável no ano passado por anexar o bairro de Guabiraba, em que nasceu, à cidade norte-americana de Chicago, que gestou a house music -gênero eletrônico que, hoje, reaparece com força como inspiração para artistas pop. Em uma hora de conversa, a produtora, curadora e crítica de arte de 30 anos disserta sobre uma certa “mediocridade” dos ouvintes de eletrônica que ainda cismam em reclamar de quebras narrativas em seus sets. Mas ela diz pouco, por exemplo, sobre ter inspirado mulheres trans quando aportou em João Pessoa (PB) um dos muitos lugares em que morou após sair da casa de seus pais, aos 14 anos, ou sobre a maioria de seus ouvintes de fora do Brasil ser composta por chineses, ou, ainda, sobre ter tocado recentemente em Peja, cidade mais populosa do Kosovo (país do sudeste da Europa).
“Fui muito inspirada pela Paulete quando, por volta de 2016, ela foi uma das criadoras da festa Kika, em João Pessoa, e uma das primeiras dessa cena clubber a trazer o protagonismo trans. De certa forma, ela me acolheu durante minha transição”, conta Jorja Moura, produtora, DJ e radialista no programa “O Som Delas”, da rádio Frei Caneca, em Recife (PE). “O nome ‘trans’ sempre vem antes, vira uma categoria. A gente está sempre na defensiva. E a Paulete desenvolveu essa habilidade nesses 10 anos porque a cena nordestina não é acolhedora.
A transfobia fica sempre mascarada. Você até ganha oportunidade, mas basta uma palavra nossa para criar algum ruído. A gente cria um escudo.”
Paulete mora em um apartamento nos Campos Elíseos, bairro de São Paulo que hoje vive um drama urbano em meio ao abandono social. O cenário é confortável se comparado à história da aspirante a DJ que, há uma década, era nômade porque queria achar uma casa, algum lugar para o seu corpo. Hoje, ela tem fãs e é um dos destaques da música eletrônica brasileira. “Recebo com muito carinho, é generoso, sabe? Mas me preocupo um pouco. Tem essa coisa de ser espelho, da projeção, do lugar que as pessoas acham que você ocupa -que, muitas vezes, você não ocupa”, analisa.
E ela fala, sim, de si. Agradece por ter sido acolhida por uma pastoral católica na qual pôde se desenvolver na música, por ter andado ao lado dos punks de Recife, ter encontrado figuras notáveis como a produtora e DJ Cashu (cocriadora do coletivo e festa paulistana Mamba Negra) e a icônica performer Euvira (soteropolitana conhecida como A Dama da Noite e que, após sucesso em São Paulo, vive em Berlim).
Interseccional
Paulete iniciou sua carreira como DJ em 2014 inspirada pelos produtores e cantores que traduziam o pop-rock internacional para o brega, tecnobrega e forró. Depois de se entremear com a diáspora negra vinda do afrobeat ou da versão carioca do miami bass, cocriou o coletivo Infecciosxs, em Recife. Em 2017, migrou para São Paulo e para as entranhas da Mamba Negra. Mas não, ainda, como DJ. “Encontrei, em Salvador, uma bicha chamada Euvira. Ela ampliou o espaço de figuras racializadas em uma cena dominada por brancas.” Euvira, então, convidou Paulete para ir aquela festa, ainda em seus primórdios, como performer. “E eu realmente odeio performar. Mas foi aí que comecei a tocar. Quando me perguntavam eu dizia que era residente da Mamba -va-lendo-me do fato de que o coletivo nunca ligou muito para esse negócio de oficializar residentes”, explica, contextualizando uma época em que o sonho era chegar em São Paulo e ter algo para comer e um lugar para viver: Antes, Paulete passaria por João Pes-soa, Salvador, Brasilia e Rio de Janeiro.
Nesse interim, desdobrou-se em mui-tas: foi curadora nas plataformas Cereal Melodia e Outros Fins que Não a Morte e conduzia o programa “Mote” na rádio comunitária Aconchego, do bairro Roda de Fogo, em que entrevistou contemporáneos para falar de música, mas também sobre desobediência -seja de gênero, seja musi-cal. “Como meu trabalho é interseccional, muitas pessoas me descobrem antes em outras mídias”, diz.

Em 2024, além do EP “Guabiraba, Chica-go”, lançado pelo selo Perfecto Estado, ela apresentou-se em Recife depois de cinco anos longe, com um set que foi didaticamente passeando por house, funk e fez.
“Chega Mais”, da banda Black Rio, soar grave para o público do festival Coquetel Molotov. À sua volta, em um palco 360 graus, formou-se um cinturão de corpos trans locais que gozaram o set com a DJ local-internacional. Além disso, ela foi indicada ao “Prêmio Multishow” na categoria Melhor DJ. Coerente, a fala sobre isso traz pouco ou nenhum deslumbre.
“Eu fico feliz, óbvio. Acho que é um indicativo, contribui para a minha carreira.
Algum tempo atrás, eu não tinha planos de futuro. Mas, agora, a música me proporciona isso porque eu saí da estratégia de subsistência. Mas eu sei em que indústria estou”, diz Paulete, que concorreu com Alok, Mochakk, Mu540, Pedro Sampaio e Anna. Foi a primeira vez que a premiação considerou dois corpos femininos numa categoria que, pela segunda vez seguida, teve Alok como vencedor. Quando cruza essas informações, sua vontade parece ser a de querer estar em outros fronts.
“Demorei muito para me entender como artista, coisa comum para pessoas subalter-nas, que vivem em contexto de escassez. Eu tento viver a vida com os pés no chão, essa é a real. Mas faço isso para que as quedas sejam menos dolorosas”, diz, soltando uma gargalhada. O tom fica mais sério quando ela analisa a percepção que se tem em relação a DJs que, como ela, exploram outras nuances -e ainda causam estranheza ao assumir ritmos brasileiros como o tecno-brega como música eletrônica.
“O discurso hegemônico coloca de lado esses gêneros para que eles não sejam a identidade brasileira. Criam-se muros em vez de pontes. E é doido porque eu toco em lugares que escolheram acolher outras sonoridades. Então, tem momentos em que a gente não deve descer nesse lugar medío-cre. Não nos penalize por sua falta de alcan-ce!”, ela termina com mais uma gargalhada, parafraseando Djavan quando defendeu a canção “Açai” daqueles que criticavam sua poética dita complicada. *