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O samba pede passagem em três lançamentos mais que especiais

O samba pede passagem em três lançamentos mais que especiais

Discos reverenciam a obra de Beth Carvalho, Zeca Pagodinho e Cartola

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Zeca Pagodinho no tributo a Beth Carvalho

“Se é samba que eles querem, eu tenho/ Se é samba que eles querem, lá vai/ Se é samba que eles querem, eu canto/ É samba que eles querem e nada mais…”, professou Jackson do Pandeiro –que não era sambista de origem– em “A Ordem é Samba”, uma sátira à predominância do ritmo afro-brasileiro nas rádios, paradas e casas de espetáculo.

Há tempos que o gênero criado no terreiro de Tia Ciata (1854-1924), por volta de 1916, não desfruta hoje da mesma popularidade de outrora. Quer dizer, nas rádios –que hoje preferem o sertanejo e os tambores eletrônicos do funk. Mas o samba, como canta Nelson Sargento (1924-2021), “agoniza, mas não morre.” Recentemente, três importantes lançamentos estão à disposição nas plataformas de streaming –e um deles foi lançado em formato duplo.

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Antes de nos debruçarmos sobre as novidades vamos contar um pouco da história. O samba que surgiu nos anos 1910 era um tanto amaxixado –de maxixe, ritmo influenciado pela música trazida por escravizados moçambicanos. Nas décadas posteriores, ele ganhou andamentos mais longos foi adotado por grandes intérpretes –Francisco Alves (1898-1952), Carmen Miranda (1909-1955), Mário Reis (1907-1981), entre outros– e até ganhou um sotaque ufanista –casos de “O Bonde de São Januário”, de Wilson Batista (1913-1968), e “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso (1903-1964).

Os discos sobre os quais falaremos trazem um pouco do samba canção, gestado nos anos 1940, e muito do partido alto, gênero que despontou principalmente nos anos 1970 e 1980 –e que foi erroneamente chamado de “pagode”. Beth Carvalho (1946-2019), nascida na zona sul do Rio de Janeiro, foi uma das grandes propagandistas. Ela não apenas deu voz a compositores contemporâneos (a ponto de ganhar o epíteto de “madrinha” por parte de alguns deles), como também jogou uma luz sobre a obra de autores de velha geração, a exemplo de Cartola (1908-1980), Nelson Cavaquinho (1911-1986) e Nelson Sargento (1924-2021), entre muitos outros. O “Sambabook Beth Carvalho”, que chegou às plataformas de streaming no dia 03 de abril, traz acólitos do batuque carioca (Zeca Pagodinho, Xande de Pilares, Teresa Cristina, etc) e outros nem tanto (Agnes Nunes, Luedji Luna, Paula Lima).

Uma curiosidade do projeto é que Beth Carvalho não possui um grande repertório autoral –criou somente oito músicas. Mas era aquele tipo de intérprete que tomava a canção para si, de maneira que é praticamente impossível pensar que ela tivesse sido composta por outros autores. É o caso de “A Chuva Cai”, de Argemiro Patrocínio e Casquinha, egressos da Velha Guarda da Portela, que Beth registrou em “Sentimento Brasileiro”, de 1980. E aqui é defendida de modo brilhante por Zeca Pagodinho. Xande de Pilares, por seu turno, agiganta outra composição que foi eternizada pela cantora –”1800 Colinas”, de Gracia do Salgueiro, que ela gravou em “Pra Seu Governo”, de 1974 (disco, aliás, que marcou sua transição de cantora de MPB, digamos, “séria”, para a carreira de sambista). Outra dessa seara é “Saco de Feijão”, de Chico Santana. Faixa de “Nos Botequins da Vida”, de 1977, ela ganha a voz de Teresa Cristina.

Teresa Cristina W.Possato
Teresa Cristina, que participa do tributo a Beth Carvalho (W.Possato/Divulgação)

Um dos acertos do disco –e não poderia ser diferente– está na convocação do Fundo de Quintal. Criado a partir das rodas de samba do bloco carnavalesco Cacique de Ramos, ele deu um sopro de novidade no samba ao incluir instrumentos como banjo e substituir o surdo por tantã e repique de mão. O conjunto revelou talentos como Jorge Aragão, Sombrinha, Almir Guineto e Arlindo Cruz. Cabe a eles defender “Samba no Quintal”, registrada por Beth em “No Pagode”, de 1977.

Como se disse, Beth Carvalho batalhou tanto pelo surgimento de novos cantores e compositores. Um deles foi Zeca Pagodinho, cujo “Zeca 40″, disco em comemoração aos seus quarenta anos de labuta, está sendo lançado em vinil duplo. Jessé Gomes da Silva Filho (seu verdadeiro nome) é a união de diversos aspectos do samba. Embora seja celebrado como compositor de partido alto, ele – que tem um conhecimento vasto sobre o repertório de sambas do século passado e serestas –manifestou o desejo de fazer um disco assim.

“Muitos compositores de hoje só querem saber de rimar paixão com coração”, me disse certa vez, desapontado com a pobreza das letras de samba. Zeca é dos tempos que o autor tinha de respeitar uma hierarquia –além de ser bom. Certa feita, “ousou” entoar seus versos na frente do mestre Aniceto do Império (1912-1993). “Garoto, quem é você para versar antes de mim? Eu verso e depois você entra”, disse ele a Zeca, apostando no jovem compositor. Zeca obedeceu à ordem e acabou aprovado na roda.

A reverência, o conhecimento e a qualidade de interpretação de Pagodinho –aliado à direção musical do violonista Paulão das Sete Cordas– abrilhantam o show, que foi gravado no início de 2024 no Engenhão, no Rio de Janeiro. O repertório traz sucessos do início da carreira (“Judia de Mim”, “Casal Vergonha/SPC”), clássicos absolutos de seu repertório (“Deixa a Vida Me Levar”, de Serginho Meriti“, transformada em hino da seleção brasileira de 2002) e participações especiais de Marcelo D2, Djonga, IZA, Jorge Aragão e Diogo Nogueira, entre outros. Duas canções trazem o exemplo do respeito aos pioneiros do samba que Zeca tanto prezou. Primeiro, embora seja um autor talentoso, ele sempre dá espaço a um compositor da velha guarda. “Vai Vadiar”, um dos principais hits de sua carreira, é de Ratinho (1948-2010) e Monarco (1933-2021), veteranos da Caprichoso de Pilares e da Portela. E mesmo sendo um intérprete de alta patente, deixou “Sufoco” para sua cantora original, a grande Alcione

E por falar em reverência, “Um Brinde ao Mestre Cartola 74” é um trabalho do duo Prettos (formado Magnu Sousá e Maurílio de Oliveira) no qual eles recriam o brilhante disco que o cantor e compositor Cartola lançou em 1974. Marca a estreia de Cartola, que foi produzido por Pelão (apelido de João Carlos Botezelli) e arranjos de Dino de 7 Cordas. O trabalho traz alguns dos principais hinos da carreira do compositor carioca, como “O Sol Nascerá”, “Alvorada”, “Disfarça e Chora” e “Corra e Olhe o Céu”. 

O duo Prettos
O duo paulistano Prettos (Renato Nascimento/
Divulgação)

Magnu e Maurílio sempre se equilibraram entre a modernidade e a reverência. Ex-integrantes do Quinteto em Branco e Preto, eles lançaram discos de samba com um toque de contemporaneidade –mas sem seguir a combinação do gênero com o soul americano, que era moda nos anos 1990 e 2000. A reverência com a qual se atém ao gênero está expressa em projetos como o Samba da Vela, que tinha como objetivo cantar partidos altos das antigas, e sua continuação, o chamado Quintal dos Prettos. 

“Um Brinde ao Mestre Cartola 74” traz exatamente o repertório do disco do fundador Mangueira, cantado tanto por Magnu quanto por Maurílio. Eles não inventam a roda, ou seja, não se arriscam a trazer novos arranjos para cada canção –afinal, como mudar o que é tão perfeito? Mais importante, traduz o repertório de um dos principais mestres da canção da história para as futuras gerações. E como diria aquele locutor de São Paulo, Moisés da Rocha, o “samba pede passagem”.

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