Eram três da tarde e a chegada do último show da turnê Ivete Clareou a Porto Alegre no último sábado (13) já causava burburinho em um mercadinho nos arredores do Parque Harmonia, local escolhido para o evento. Inspirado pela relação de Ivete com a obra e a figura de Clara Nunes, o projeto marca o encontro de um dos mais famosos timbres do axé com as melodias do samba e do pagode. No céu, um solaço responsável pelos mais de 30º registrados se apresentava como um abre-alas muito caloroso para esse encerramento.
Porto Alegre recebeu a noite com participações especiais que deram tom local ao encerramento: do pagodinho gaúcho do Grupo Aperta o Play às colaborações de Benzadeus (com Magrão), Diogo Nogueira e Davi Quaresma, passando por releituras de clássicos do pagode anos 90, improvisos em homenagem à cidade — incluindo uma palinha com versos de Kleiton & Kledir —, tudo isso em um setlist que mesclou axé, samba e pagode e transformou o Parque Harmonia em uma festa porto-alegrense.
O esquenta para a última parada
No entorno dos portões do Parque Harmonia, trabalhadores autônomos ofereciam faixas do show, leques para aliviar o calor e bebidas geladas. Chapéus, bonés, óculos escuros, tênis, vestidos, croppeds e bermudas se multiplicavam nas escolhas dos looks dos fãs que já se encaminhavam para o evento.
Afinal, além da estrutura projetada para o ar livre, a turnê Clareou tem como uma de suas marcas o longo tempo de duração, com apresentações que duraram mais de seis horas. Uma decisão que remete à tradição foliã baiana, herança de trios elétricos e carnavais soteropolitanos marcados por extensos circuitos, como Barra-Ondina e Campo Grande, e que o público gaúcho estava disposto a abraçar.
Enquanto aguardava o início do show, parte do público aproveitava o tempo livre para circular pelos ambientes do evento, como a Loja da Mainha – com produtos oficiais com a identidade visual de Ivete Clareou – idas à praça de alimentação, visitas ao open bar e interação com as ativações de marcas parceiras.
Outra parte da plateia, porém, já se entregava às batidas do set da DJ Jude Paulla, atração de abertura oficial. Com uma seleção marcada pela brasilidade, a artista fez do diálogo com as diversas vertentes da música (pop)ular brasileira o cartão de visitas. Do funk ao pagode, da MPB ao brega, artistas lado B, como Xênia França e BaianaSystem, estiveram ao lado de Gaby Amarantos, Rachel Reis, Duda Beat, Gloria Groove e Pabllo Vittar. Hits como “Por Supuesto” e “Numa Ilha”, de Marina Sena; “Banho de Folhas”, de Luedji Luna; “MOTINHA 2.0 (Mete Marcha)”, de DENNIS, e Luísa Sonza; e “SEQUÊNCIA FEITICEIRA”, de Pedro Sampaio, MC GW, MC Rodrigo do CN, MC Jhey e MC Nito, animaram o ambiente.
Tão diverso quanto o mix de sonoridades é o público que aguardava pela cantora baiana. A pista promovia um verdadeiro encontro de gerações. Entre jovens, adultos e terceira idade, viam-se grupos de amigos, familiares e casais das mais diversas orientações sexuais.
“Estou me sentindo muito mais acolhida aqui do que na maioria dos shows que frequento”, destacou a fã Fabiana Martins, de Caxias do Sul, que veio ao show ao lado da irmã Suzana. Ela destaca: “A Ivete é uma pessoa genuína que pega junto da comunidade LGBTQIA+”. À reportagem da Billboard Brasil, as irmãs dedicaram o show à mãe, Irma Martins, que não pôde comparecer por conta de uma cirurgia.
Assim como o Sol, Ivete brilha mais uma vez

Por volta das seis da tarde, quando os termômetros marcavam 32º, os músicos assumiram suas posições no palco. Minutos depois, era a vez de Ivete fazer sua última entrada triunfal da turnê Clareou no ano. Ao todo, foram cinco apresentações, iniciadas ainda em outubro. Além da capital gaúcha, Clareou pousou nas cidades de São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Salvador.
Beijada de dourado pela luz do sol, Ivete surgiu em um elegante e estratégico rabo de cavalo, vestindo blusa azul‑celeste de manga longa — talvez herança de uma previsão do tempo que havia projetado chuvas para aquele sábado em Porto Alegre — e calça jeans brilhante, presente em demais figurinos da era Clareou.
Esbanjando rodopios e samba no pé desde o início da passarela ao fundo do palco, a estrela baiana entoou os versos de “Marechera”. Espécie de manifesto conceitual da turnê, a canção sintetiza a conexão de Ivete com o samba, exalta o gênero como herança familiar e nacional e, o principal, faz um aceno ancestral e coletivo aos bambas que integram seu panteão: de Clara Nunes a Arlindo Cruz; de Dona Ivone Lara a Leci; de Candeia a Clementina de Jesus. Na primeira oportunidade, customizou a letra para enunciar: “Porto Alegre, prazer, Veveta Marechera”.
Com um sorriso no rosto e olhos vidrados em Ivete, a fã Rosana Elias estava posicionada na linha de frente da plateia, segurando uma rosa vermelha. À Billboard Brasil, ela revelou: “Estou aqui comemorando os cinco anos da cura do meu câncer de mama”. Sua conexão com a artista se fortaleceu por conta do tratamento de saúde. Rosana ouvia as músicas de Ivete durante as sessões de quimioterapia. “Elas me davam força e energia”, resume.
Em pé, com auxílio de um par de muletas, Regina Santos Gomes também assistia aos primeiros minutos do show com empolgação, diretamente da área de acessibilidade do evento. Regina tem mobilidade reduzida devido a um quadro de paralisia cerebral. Frequentadora assídua de shows, ela fez questão de elogiar a estrutura do evento Clareou em Porto Alegre: “A equipe aqui é ótima e estou enxergando o palco super bem. Diferente de outros shows, este aqui é bem pertinho dele”, avalia.
A primeira hora de show já deu o tom da estrutura modular do setlist, guiado pela costura entre clássico e contemporâneo, pagode e samba, hits explosivos e baladas românticas. Já de arrancada, “Curtindo a Vida”, do grupo Bom Gosto; “Só Vai de Camarote”, do Revelação; e “P do Pecado”, do Menos é Mais em parceria com Simone Mendes e ganhadora do prêmio Multishow 2025 nas categorias Hit do Ano, Clipe TVZ do Ano e Samba/Pagode do Ano.
Sucessos eternizados na voz da cantora Clara Nunes, como “Canto das Três Raças” e “Juízo Final”, também se fizeram presentes. Destaque para “Ainda Existe Amor em Nós”, do Sorriso Maroto, com direito a trechos em espanhol para saudar um fã‑clube estrangeiro identificado por Veveta no meio da galera.
No palco 360º, a artista flutuava por todos os lados. Se estivesse equipada com um GPS, os resultados de distância percorrida e mapeamento de calor durante a apresentação dariam inveja a muitos jogadores de elite do futebol. Conhecida pelo vigor em suas apresentações, a vitalidade e a energia de Ivete não deixam de impressionar.
Se a diva era toda do público, muito se deve a um time robusto de músicos afiados e em sintonia na retaguarda. Entre espontaneidade, interações com o público, qualidade vocal impecável e samba de sobra, é o poder de Ivete como intérprete o que mais engrandece a apresentação. Clareou não se trata de meros covers. Em cada letra de samba e pagode, a cantora dedica gestual e cadência para fazer jus à singularidade das composições.
Quando a noite cai, Clareou é iluminado pelas estrelas

Com a despedida do sol, o céu escuro deu a senha para os convidados. Às 19h45, o Grupo Aperta o Play foi anunciado. Criado em Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre, eles entraram em campo jogando em casa. Nesse encontro da baiana no pagodinho gaúcho, houve destaque para releitura de “Desafio”, do cantor Belo. Na conversa, os artistas aproveitaram para destacar o protagonismo do Rio Grande do Sul quando o assunto é pagode. Dados divulgados em relatório do Spotify em 2023 posicionaram o Estado em quarto lugar no ranking dos que mais ouvem o gênero.
Na sequência, foi a vez do primeiro bloco de axé, recheado com alguns dos maiores sucessos de Ivete. A decisão não só agradou aos fãs mais tietes de Ivete, como confirmou o lugar cativo de seu repertório na memória afetiva do cancioneiro popular brasileiro, além de reforçar o DNA eclético do projeto. Clássicos como “Não Precisa Mudar”, “Flor do Reggae” e “Me Abraça” fizeram o público formar coro.
A emocionante “Quando a Chuva Passar” tocou ainda mais fundo no coração do fã José Pedro Marques. Seu primeiro encontro com a faixa se deu através de um MP3 emprestado por uma amiga nos anos 2000 e tornou‑se o símbolo de sua relação com a cantora. Marques conta: “Perdi minha mãe, Magda, aos 8 anos. Por conta disso, sempre fui uma criança muito melancólica. E eu ouvia essa música que, por falar sobre o céu, me fazia lembrar muito dela”.
O amor por Ivete estava estampado na camiseta vestida por João Pedro, nos óculos de sol que ele usava — que ostentavam uma linha assinada por Ivete Sangalo —, no autógrafo da baiana tatuado no braço e na coroa sobre as iniciais “IS” desenhada na lateral direita de seu cabelo. Já Fabiane Menezes não pôde extravasar a admiração por Ivete na roupa, mas isso não a impediu de curtir tudo que pôde. Uniformizada, a trabalhadora do evento, que assistia ao show com alegria, confidenciou: “Peguei esse freela só pra ver Ivete!”.
As luzes brancas refletidas em Ivete fizeram dela uma espécie de lua terrena noite adentro. E mais estrelas aguardavam o momento de subir ao palco. Direto de Brasília, a atração da vez foi o grupo Benzadeus. A voz aveludada do vocalista Magrão, enaltecida por Ivete, emocionou. Ao cantarem “Faz Falta”, do grupo Exaltasamba, a baiana fez questão de pedir a ele uma versão do refrão à capela.
Minutos depois, Ivete anunciou: “O próximo convidado fez questão de dizer ‘eu quero ir cantar no Clareou no Sul!’”. Foi a vez da estrela Diogo Nogueira se juntar ao palco ao som do hit “Pé na Areia”. Após, Diogo explicou que nutre carinho especial pela cidade por já ter morado em Porto Alegre. Foi o suficiente para que o paparico à cidade atingisse seu apogeu durante a noite, com Ivete entoando os versos “Deu pra Ti / Baixo astral / Vou pra Porto Alegre, tchau”, de “Deu pra Ti”, da dupla gaúcha Kleiton & Kledir.
A palinha improvisada foi acompanhada pelo herdeiro mais famoso do sambista João Nogueira, que também dividiu os vocais com Ivete para a belíssima “Clareou”, de Xande de Pilares, e “Alma Boêmia”, de Toninho Geraes. Além do repertório, uma informação fez o público se animar: a presença da atriz Paolla Oliveira, que acompanhava o namorado.
Às 21h30, o cantor Davi Quaresma, representante da novíssima geração do pagode, foi convocado. Ao lado de Ivete, o último convidado da edição enfileirou grandes hits em um generoso setlist composto por “Deixa Alagar” e “Coração Radiante”, do Grupo Revelação; “Estrela” e “Tá Vendo Aquela Lua”, do Exaltasamba; e “Maliciosa”, de Ludmilla. No conjunto, as atrações selecionadas foram um sucesso no quesito empolgação. No entanto, formaram uma fotografia cuja ausência de artistas mulheres se fez notar — um fato que destoa das edições do **Clareou** em Salvador e em São Paulo.
Os últimos raios de Ivete Clareou
Quando a maratona musical estava próxima de completar quatro horas, Ivete provocou a plateia: “Vocês estão cansados?” A brincadeira deu brecha para a cantora confessar não saber se “chorava” ou se “ria” por estar se encaminhando para o fim da turnê. Ela aproveitou o momento para expressar que, em resumo, o palco do Clareou faz com que ela se sinta em casa. Ivete declarou ainda que o projeto simboliza um sonho realizado e uma experiência de profunda transformação e fez questão de agradecer aos músicos da banda.
Os últimos momentos da apresentação foram de pura energia e entrega. Se os que ainda dançavam no pique de Ivete eram minoria, a maior parte do público — até mesmo os que já estavam sentadinhos no chão — mantinha‑se fiel ao coro nas canções. A saideira foi embalada pela vibe pagode anos 90, com clássicos como “Tudo Fica Blue”, do Soweto; “É Tarde Demais” e “Cheia de Manias”, do Raça Negra, e “Essa Tal Liberdade”, do Só Pra Contrariar.
Com os pés descalços, Ivete ainda tirou do bolso alguns de seus sucessos mais recentes para retornar ao axé e dar uma pitada de baianidade aos ventos quentes do quase verão gaúcho. “Macetando”, parceria com Ludmilla, “Cria da Ivete” e “Energia de Gostosa” comandaram a folia que contagiou até a equipe de Mainha. Aos pulos, os trabalhadores da turnê formaram uma roda ao redor de Ivete, enquanto os fogos anunciavam o fim do Ivete Clareou 2025. O encerramento do projeto em Porto Alegre trouxe novo fôlego à defesa de sua posição como a principal praça do circuito de shows do Sul do Brasil.
O sucesso de Ivete Clareou consolida o formato de apresentações longas no segmento samba e pagode e reafirma Ivete como uma das principais intérpretes do seu tempo. Essa bem-sucedida união de uma das principais vozes do Brasil com o samba e com o pagode parece estar longe do fim. Segundo a própria artista, o projeto deve continuar em 2026.








