Gilberto Gil faz 83 anos: as histórias por trás de 10 grandes letras
De internação no hospício ao tempo como entidade espiritual, Gil poetisa vida
Gilberto Gil completa 83 anos nesta quarta-feira (26), com uma trajetória que se confunde com a própria história da música brasileira. Além de cantor, compositor, ex-ministro e pensador da cultura, Gil é – sobretudo – um artesão da palavra. Em suas letras, ele mistura crítica social, espiritualidade, afeto, oralidade e filosofia com leveza e sofisticação únicas.
A partir do livro “Todas as Letras”, organizado por Carlos Rennó, revisitamos dez composições para descobrir as histórias, inspirações e imagens por trás dessas músicas que se tornaram clássicos.
1. Aquele Abraço (1969)
“Alô, Rio de Janeiro / Aquele abraço!”
Escrita no exílio iminente, “Aquele Abraço” é um misto de despedida e inventário afetivo. Gil a compôs no dia em que voltaria a Salvador, depois de uma visita ao Rio para tratar com o Exército sobre sua saída do país.
A letra, terminada num guardanapo no avião, é construída como uma espécie de crônica em versos: uma cidade se despedindo de si mesma, entre soldados que usavam a expressão “Aquele abraço!” como bordão e uma quarta-feira de cinzas que simboliza o fim de um ciclo.
A simplicidade melódica, criada de cabeça por falta de instrumento, contrasta com a força simbólica da canção, que virou um clássico imediato. Gil a descreve como uma catarse necessária, o único jeito que ele conhecia de transformar um trauma em arte.
2. Sandra (1977)
“Amarradão na torre dá pra ir pro mundo inteiro/ E onde quer que eu vá no mundo, vejo a minha torre.”
Gravada no disco “Refavela”, “Sandra” é uma das letras mais íntimas e autobiográficas de Gil. A canção nasceu de um episódio marcante: sua prisão em Florianópolis por porte de maconha, em 1976, durante a turnê dos Doces Bárbaros. Durante o internamento ambulatorial numa clínica psiquiátrica, Gil conheceu diversas mulheres que marcaram aqueles dias e que, depois, seriam nomeadas na música. Maria de Lourdes, Carmensita, Lair, Salete, Ana, Dulcina; todas existiram.
Sandra, citada no fim, é duplamente simbólica: remete tanto à esposa de Gil na época (como o “olhar espiritual que tomava conta de tudo”) quanto a uma jovem fã, também chamada Sandra: “Uma menina linda, maravilhosa, também chamada Sandra, que tietava o Caetano em Curitiba, amiga da Andreia [“na estreia” – trecho da canção] — que me tietava”, explica Gil.
A música mistura o relato documental com espiritualidade, oralidade e afeto — uma espécie de exorcismo poético de um momento de fragilidade.
3. Babá alapalá (Aganju)
“Corpo eterno e nobre de um rei nagô/ Aganju, Xangô.”
Gravada no álbum “Refavela”, “Aganju” é uma invocação à ancestralidade afro-brasileira. A canção nasce do encontro de Gil com o candomblé na Ilha de Itaparica, levado por Mestre Di em 1972, pouco depois de voltar do exílio. Foi ali que ele viu Alapalá dançar, egum da família de Xangô, e soube, pelos búzios, que também era de Xangô.
A letra mistura referências a Aganju, considerado um Xangô menino, com a figura de Alapalá, espírito ancestral da mesma linhagem. Gil reconhece que constrói uma ponte livre e afetiva entre orixás (entidades divinas) e eguns (espíritos desencarnados), como quem tenta cantar uma herança sentida mais no corpo e na intuição do que nos costumes.
“Aganju” é sobre pertencimento espiritual, mas também sobre cultura. Marca o início de um entendimento mais profundo do papel do candomblé como força formadora da Bahia, presente no modo de andar, de cantar, de celebrar. É quando Gil começa a ouvir os tambores não só como ritmo, mas como raiz.
4. Realce (1979)
“Realce, realce/ Quanto mais purpurina melhor.”
Frequentemente vista como uma canção “pop demais” dentro da discografia de Gil, “Realce” foi muitas vezes subestimada. Mas o próprio autor defende sua profundidade como síntese de um momento de transformação interior e intelectual.
Na época, Gil estava imerso em leituras de filosofia oriental e práticas de meditação, e quis traduzir esse mergulho para o idioma da canção popular. Ele aponta a presença do conceito chinês de wu wei: “a ação da não-ação”, como eixo filosófico do texto.
Apesar da atmosfera disco e dos “pseudorrefrões” que evocam as pistas de dança, a letra aborda grandes catástrofes naturais, o eterno retorno, a natureza cíclica da existência e a relação entre afeto e energia cósmica. É uma canção sobre brilho, sim, mas também sobre profundidade, presença e vibração sutil.
5. Não Chore Mais (1979)
“Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais”
Versão brasileira do clássico “No Woman, No Cry”, de Bob Marley na banda The Wailers, “Não Chore Mais” é mais do que uma tradução: é uma transposição afetiva e política. Gil levou a cena da música original – uma comunidade jamaicana perseguida – para o Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, onde hippies tocavam violão e fumavam maconha sob o olhar da repressão policial.
Mas no centro da letra está a perda. Amigos que desaparecem, tempos que não voltam, o fim de uma era. “Não chore mais” é tanto consolo quanto despedida. Gil interpreta a canção como um lamento doce e corajoso, atravessado por sua visão conciliadora: “O passado tem um débito conosco, mas vamos dar um crédito ao futuro”, diz ele.
A letra, que nasceu no fim dos anos de chumbo, soa ainda hoje como uma tentativa de cuidar da memória, sem se deixar paralisar por ela.
6. Andar com Fé (1982)
“Andar com fé eu vou / Que a fé não costuma faiá”
A força dessa canção está na simplicidade e na oralidade. Gil compôs a faixa como uma reafirmação da fé em tempos incertos, mas fez questão de manter a expressão “faiá” no lugar do “falhar” tradicional. Segundo ele, a escolha legitima a forma popular de falar, homenageando os modos de expressão de várias regiões do Brasil.
“‘Faiá’ é coração, ‘falhar’ é cabeça — e fé é coração”, diz Gil no livro. A música virou um hino espontâneo, quase um provérbio nacional, com sua batida suave e mensagem direta, mas carregada de significado.
7. Drão (1982)
“O amor da gente é como um grão / Uma semente de ilusão”
Poucas canções em português falam da separação com tanta beleza e contenção quanto “Drão”. Escrita após o fim do casamento com Sandra (apelidada Drão), a música demandou de Gil um processo longo, quase ritualístico. Ele descreve noites em claro, pausas necessárias e um cuidado quase artesanal com cada verso.
Uma das imagens mais potentes está logo no início: o amor comparado a um grão — pequeno, fértil, mas também ilusório. A metáfora mistura afeto e desapego, semente e fantasia, de um modo que traduz o amadurecimento emocional do compositor.
“Drão” não é uma canção de dor explosiva: é uma elegia contida, construída com elegância e serenidade. Gil não faz do fim um trauma, mas uma lição delicada sobre a impermanência e a transformação do amor.
8. Tempo Rei (1984)
“Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei / Transforma as velhas formas do viver”
Gravada no disco “Raça Humana”, a canção é uma espécie de oração, mas também um tratado filosófico sobre o tempo como entidade — não apenas cronológica, mas espiritual. Gil escreveu essa letra em diálogo direto com “Oração ao Tempo”, de Caetano Veloso, mas com um viés menos niilista, segundo ele.
Enquanto Caetano se resigna à extinção do ego e do tempo, Gil abre espaço para o mistério do “pós” e do “pré”, com um olhar quase cristão, ou pelo menos espiritualizado, sobre a continuidade da existência. Ele questiona: se o mundo seguiu mesmo após Sartre – filósofo e escritor que o cantor tem como referência, porque haveria de acabar com a sua própria morte?
Na letra, até o ditado popular é subvertido: “água mole em pedra dura/ tanto bate que não restará nem pensamento”. A frase aponta não para a transformação lenta das coisas no tempo, mas para a dissolução do próprio tempo, ou sua transmutação em eternidade.
9. A Novidade (1986)
“A novidade era o máximo do paradoxo / Estendida na areia / Era a forma mais séria de liberdade”
Escrita em tempo recorde para o disco “Selvagem?” dos Paralamas do Sucesso, a letra foi criada a partir de uma fita instrumental enviada por Herbert Vianna. Gil ouviu a base no quarto de um hotel com vista para o mar e, em cerca de uma hora, escreveu o que ele considera um de seus textos mais fortes.
A imagem da sereia — bela, livre e ao mesmo tempo prisioneira — é uma metáfora da desigualdade social e da exclusão, especialmente nos países do chamado Terceiro Mundo. Hoje, Sul Global.
A sereia “estendida na areia” representa o contraste entre o desejo e o abandono, a promessa e a opressão. Gil mistura crítica social, poesia e forma pop com rara precisão.
10. A Paz (1987)
“Uma bomba sobre o Japão/ Fez nascer o Japão da paz”
Companheira de “Drão” e “Tempo Rei” na galeria das canções meditativas de Gil, “A Paz” nasceu de um gesto mínimo: João Donato cochilava em sua sala enquanto Gil ouvia uma sequência de temas chamados “Leila”.
Ao ver o amigo dormindo em plena luz do dia, Gil pensou na ideia da paz e começou a construir a letra como um jogo de contrários. O resultado é uma canção sobre paradoxos: destruição que gera reconstrução, luz que nasce da escuridão.
Como em outras músicas suas, a imagem da dualidade aparece como princípio criador. Gil invoca aqui o yin-yang, a polaridade fértil entre opostos, numa linguagem simples, mas filosófica: paz como presença serena que se revela após o abismo.