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Ed Motta: as dores e a delícia de ser ‘o gênio que a gente tem de aguentar’

Ed Motta: as dores e a delícia de ser ‘o gênio que a gente tem de aguentar’

Obcecado, ele chega ao 14º disco da carreira sendo um chato convicto

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Pergunto a Ed Motta sobre terapia. O músico é um obcecado por tudo que o cerca em seu apartamento no Jardim Botânico: uma extensa coleção de discos, filmes, HQs. Mas tem também a colher específica do escargot, a sua cama, sua esposa Edna, a água com gás para chá e, principalmente, as regras e o controle que outorga durante suas gravações. Especialistas chamariam de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Ele nega. E sua resposta é um desenho de como funciona a mente do compositor e arranjador de todas as linhas de “Behind The Tea Chronicles”, 14º disco de uma carreira iniciada aos 15 anos. Agora, aos 52, ele sabe o quanto é chato.

“Não, não, não! Terapia, não. Eu adoro tudo isso.” diz para, em seguida, autoanalisar-se de improviso. “TOC é a pessoa ir na rua pisando só em quadradinhos brancos. Quer dizer… Isso eu também tenho, faço. Mas isso é uma delícia! Isso é ótimo! [gargalha folgado para fazer uma pausa repentina] Rapaz, deixa eu te perguntar, que fone é esse que você tá usando? Ah! Um AKG? Nossa, legal, legal. Ele é fidedigno. Eu também uso um AKG, um outro modelo. Mas voltando à obsessão… Os psicólogos devem dizer que os leoninos fazem pouca terapia. Eu costumo dizer que nunca errei! [gargalha mais uma vez]“.

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para ler ouvindo: “Safely Far”, do álbum “Behind The Tea Chronicles” (Dwitza, 2023)

Obsessão, controle e chá com água de montanha

“Behind The Tea Chronicles” fantasia sabotagem, máfia, gaslighting. Ed pegou-se surpreendido com os quase 500 mil plays do álbum. “Não é um disco de ‘ain, eu vivi a pandemia e me reencontrei’ ou de ‘esse disco fala muito dessa fase minha, do meu eu…’. Ah, fuck! [Meu disco] É tudo roteiro, tá? É filme, tá? Não tem ‘meu eu’ aí, não, [gargalha e segue imitando clichês de press release]. É o vazio dos artistas, né? São muito vazios… Nossa senhora. Pára, tá?”, sacaneia, falando da mesma forma como se comunica nas lives diárias que toca no Instagram.

Pelos 45 minutos do novo álbum, obsessões antigas são apresentadas (os filmes das décadas de 1930 e 1940,  o cinema europeu psicológico do dinamarquês Carl T. Dreyer, o sueco Ingmar Bergman, o francês Jacques Tati, os quadrinhos franco-belga Buddy Longway, os traços do norte-americano Winsor McCay, a série Quartemass) e também outras mais recentes como o chá (se possível, servido com água com gás ou água de montanha, como explicou à IstoÉ).

Obsessão gera controle e, no primeiro dia de gravação do álbum, Ed já havia deixado o produtor Michel Limma boladíssimo. “Você não tá feliz, cara?” perguntava insistentemente a Ed. “Eu tô feliz, pô! O que você quer que eu faça?”, retrucou. “Eu não tenho esse espírito hippie de ficar rindo no estúdio”, desenha. O produtor quase veio a óbito quando, entre um gole ou outro de vinho, Ed deixou amostra o inferno astral que o acompanha nas gravações, dizendo que queria gravar outras canções ao invés daquelas já combinadas.

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Os quadrinhos de “Little Nemo in Slum­ber­land”, de Steven McCay: HQ homenageada em “Behind The Tea Chronicles” na faixa “Slumberland”

O ‘controverso’ Ed Motta

O tijucano sempre andou sozinho, “sem galera”, como prefere dizer. Vê a música não como “We Are The World”, mas como o jogo de tabuleiro “War”. Aos olhos dos haters, Ed se comporta como um rebelde mimado, um leonino, um egoísta. Na escola, não era um garoto problema, mas quem trazia o problema. “Bicho, eu sou cancelado desde criança. Uma vez por semana eu era retirado de sala. O problema é o outspoken [ser franco]. Eu fazia o problema acontecer”, diz gargalhando (mais uma vez) com orgulho da criança que foi e que levou um livro do anarquista Mikhail Bakunin para provar à classe que representante de turma não era algo necessário.

Ed é difícil de categorizar, o que não deixa de ser um prazer para quem escuta suas músicas — mas um delírio para um mercado musical e editorial minguante, sedento por etiquetas. É comum vê-lo justificando a si e seus atos em entrevistas que quase sempre fazem o nome Ed Motta vir antecipado do adjetivo “controverso”. “Eu tenho que justificar aquilo que é minha estranheza perto do que é desejado dentro do comportamento padrão”, acrescenta.

“Eu vi o Edu Lobo falando na Folha de S. Paulo que o Clube da Esquina era muito mais importante do que a tropicália. Eu falo disso o tempo inteiro — e sou crucificado por não estar ali babando o ovo dos Doces Bárbaros. Meu direito de fala é sempre uma chacota. Já que eu não sou falso, fiquei com essa pecha de ‘controverso’, ‘maldito’, ‘gênio que a gente tem de aguentar'”.

Aos 52 anos, ele vê a si como chato, mas orgulhoso da chatice que compartilha com a quadrinista Edna Lopes. “Somos dois ‘intelectuais-zinhos’, casados há 33 anos. É um negócio muito esnobe. Eu não ia casar com alguém que não tinha visto todos os filmes de Fritz Lang” diz gargalhando ao citar o austro-teuto-americano, um dos maiores e mais prolíficos gênios do cinema.

O artista que odeia show mas ama o filtro do ‘The Rock bombado’

para ler ouvindo: Ed Motta botando som na NTS Radio, 2006

Abrir o Instagram é ter a certeza de que a carinha de Ed Motta estará em uma bolinha rosada com a palavra “live”. Um viciado em conversar com os fãs pela rede social. Ora é um curador, mostrando seu acervo; ora é um cruzamento perigoso de Tijuca, Méier e Paris que resulta em frases (e estabelecimento de regras) que levam a audiência ao delírio (e os haters ao desgosto).

Se você encontrá-lo online aos fins de semana, possível que veja a cabeça do compositor ou montada em cima de uma gaivota, ou voando por uma cozinha com touca branca de chefe, ou no corpo bombado de Dwayne “The Rock” Johnson. “Tem sido um barato, eu amo aquilo ali”, confessa. Ed tira sarro de seus conterrâneos cariocas, dos paulistas, do baixista que carregava uma “churrasqueira” de cinco cordas (“ninguém toca baixo de cinco cordas comigo em estúdio”) e de usuários que entram na live e chamam-no de frustrado (“quem não é frustrado nesse país?”). A imitação de um carioca classe média alta mandando um Red Hot Chili Peppers é ouro.

O humor exagerado cativa e a presença virtual deu resultado nos números do novo álbum de um artista que não abandonou o sonho de ser um cantor mais popular. Ele odeia fazer show, passar som, carregar mala e dormir fora de casa — mas parece menos traumatizado com as experiências de sucesso que o alçaram a cantor radiofônico (primeiro com “Manuel”, depois com o disco “Manual Prático Para Festas, Bailes E Afins, Vol. 1”, de 1997). Uma parte dos fãs não entende. A outra vibra com um artista que parece ser arredio, mas que talvez esteja só curtindo algum tipo liberdade em ser celebrado na França, Japão e Alemanha.

Volta e meia, alguém pergunta “é verdade que você não gosta de ‘Manual’?”. “Eu implico, não gosto… Aquilo ali foi uma gestão tirana”, diz como não querendo lembrar a luta pela direção criativa do álbum que teve com a Universal Music — o stress rendeu-lhe um pólipo que o impedia saborear o gosto de ser popular. Mesmo com três singles rodando nas rádios, as coisas pareciam não bater. E ele também já tava em outra: vidrado nas tortas linhas harmônicas de Guinga. Anos depois, o artista “compraria” sua liberdade ao ter o “direito” de produzir “Dwitza”, último álbum antes de migrar para a Trama, com as regalias de divulgação dada aos álbuns mais comerciais da gravadora. O álbum não alçou voos radiofônicos, claro, mas é um ícone divisório na discografia edmottiana. Mas a curiosidade do artista ainda é dúbia sobre ser um artista que pode ser novamente popular.

“Sim, sim, sim, sim, sim”, diz repetindo a palavra enquanto pensa se realmente quer ser um cantor popular ou ter uma música de “Manual…” revivida pelo TikTok. “Olha, eu tô esperando por isso. É das coisas mais divertidas dos novos tempos. Mas eu ainda pago o preço da… minha personalidade. Eu sou muito crítico, reclamão. Nunca tá legal. Então, não sei.”

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