Bad Religion: a luta pela bermuda e o show que transforma tiozão em criança
Banda esteve em Curitiba para uma apresentação na última sexta-feira


Fora da região Sul, pouco se sabe sobre Curitiba no resto do Brasil. Sabe-se que faz muito frio. O problema é que faz muito calor também. Outra coisa é que é um reduto importante de fãs de hardcore. Por qual outra razão o Bad Religion viria, com o perdão do trocadilho, religiosamente tocar na capital paranaense toda vez que desembarca na América do Sul? Certamente que não é pelo pinhão cozido, porque essa época já passou, conforme atestam os 33 graus do fim da tarde do primeiro dia de dezembro.
Um comunicado mais cedo no dia anunciava o veto a copos, guarda-chuvas, chinelos, camisa de time, regata e bermuda. Espera. Bermuda? Proibida justamente no show de uma banda que é o expoente do gênero vulgarmente chamado de punk rock bermuda? Com um solzão de matar árabe lá fora? Não dá! Antes que rolasse um quebra-quebra generalizado e catártico digno de um Spike Lee, a intrépida Cláudia Silvano, a Tia do Procon, botou o pé (de pantufas) na porta e resolveu a questão, sem nem precisar tirar o pijama pra isso. Bermudas liberadas. Valeu, tia.
Lá fui eu, de bermuda de esporte (qual esporte eu não sei, não me pergunte, não pratico esporte), assistir ao meu sétimo show do Bad Religion. O grupo, que tinha o costume de a cada mais ou menos dois anos fazer um show por aqui, não botava o pé no Brasil desde 2019. A pandemia logicamente atrapalhou, mas cá entre nós: com 43 anos de atividade, era todo mundo do grupo de risco mesmo. Importante é que agora vieram, e convidaram o Sugar Kane, banda curitibana expressiva na cena HC que, das imediações do bairro do Água Verde nos anos 90, fizeram um showzaço de abertura e mostraram que, assim como a atração principal da noite, também conseguem sustentar algumas décadas de bons serviços à indústria de cotoveladas.
O setlist do Bad Religion seguiu as diretrizes gerais do show no Chile que fizeram recentemente. Surpreenderam na abertura com “Defense”, um lado B do disco The Process of Belief, que por sua vez também não é exatamente um clássico. A plateia é fiel e se diverte com qualquer coisa, mas pira mesmo o cabeção com os clássicos “Anesthesia”, “You”, “Delirium of Disorder”, e até mesmo com os clássicos modernos do cancioneiro da banda, como “Sorrow”, “Wrong Way Kids” e “Los Angeles is Burning”.
A produção passa distribuindo água pra quem está espremido na grade, tremelicando em traumas recentes. Enfim, quando tocam “21st Century Digital Boy”, o pretume de gente se revolve em puro êxtase e anarquia. Seguranças tentam em vão conter os surfes, um tênis voa longe, uma menina taca um livro no palco e todo mundo toma banho de cerveja. O solo de “Fuck Armageddon… This is Hell” é cantado como coro de torcida organizada e fica meio que na cara o porquê desses gringos gostarem tanto de vir ao Brasil incendiar nossos corações impregnados que não dividem violência e diversão.
Os membros da banda não disfarçam os sorrisos de orelha a orelha pela realização de que a plateia que assiste a um concerto de música não difere muito de mil e duzentas crianças de boia inflável numa piscina de onda de parque aquático. Caos e sobreposição.
O hardcore definitivamente virou som de tiozão e nem toda finasterida e meia branca esticada na canela seria capaz de mascarar o desmoronamento facial generalizado, penso enquanto percebo, ao som de “21st Century Digital Boy” que o Bad Religion já é uma espécie de “Whitesnake” e que o lazy middle class intellectual agora sou eu. Greg Graffin, o vocalista, assentou bem os anos em seu personagem professoral de dedo em riste, enquanto Jay Bentley, no baixo, nos dá a esperança de ser um sexagenário gatão, quem sabe. É tudo pensamento positivo, eu sei, e os guitarristas Mike Dimkich e Brian Baker são nossos sólidos memento morri no palco. Felizmente, quando retornam para o bis (esse estranho esconde-esconde de jardim de infância) com “Generator” e “American Jesus”, a realidade é suspensa e o banho de cerveja e tênis sujo respondem por nós os moralistas dessa cidade moralista que nos interpelam em som de reprovação: Vocês não têm vergonha na cara?
O Bad Religion segue viagem para São Paulo, onde toca no Primavera Sound neste fim de semana, e nós voltamos pra casa com a camisa encharcada e colada no corpo, o cabelo despenteado e, quem sabe, um merchandising um pouco caro demais.
Ps: Finalmente peguei uma palheta. No meu sétimo show. Talvez seja parte do programa de fidelidade. Botei no bolso da minha bermuda e fui pra casa.