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‘Amniótico’, Mateus Aleluia chega sinfônico e metafísico em novo álbum

‘Amniótico’, Mateus Aleluia chega sinfônico e metafísico em novo álbum

Mateus Aleluia abriu uma edição impressa do jornal A Tarde, em um dia do ano de 2003, em Salvador.

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Ele estava de volta à capital depois de 19 anos em Angola. Naquele dia, prestou atenção nas declarações de um produtor que dizia, naquel jornal, estar aberto às novidades da música da Bahia, mas também atento ao resgate daquilo que não estava na superfície.

Dizia assim o produtor Tadeu Mascarenhas que, à época, se aventurava na abertura de seu estúdio próprio: “A gente quer relançar coisas antigas como Os Tincoãs”. Dias depois, era um Tincoã remanescente – o próprio Mateus – que estaria à sua porta:

– Um senhor. Quem será? Não conheço.
– Eu sou Mateus Aleluia.
– Uau.
– Do Tincoãs.
– Uow.

Foi o que sobrou na boca de um produtor boquiaberto: interjeições.
“Eu não tinha noção. Não sabia quem tava vivo. De lá para cá, foram muitas coisas”, relembra Tadeu.

“Mateus Aleluia”

Essa interação gestaria um disco perdido d’Os TincoãsCanto Coral Afrobrasileiro, de 2023 – e cinco discos do Seu Mateus, incluindo o novo Mateus Aleluia, que sai independente em 2025 e com movimentos que requerem do ouvinte o momento da escuta; algumas faixas somam quase 15 minutos, fazendo a experiência algo próximo de ouvi-lo falar, como em uma entrevista concedida por ele uma tarde ensolarada de São Paulo, aproveitando shows de lançamento do novo disco.

Durante registro fotográfico em São Paulo (Raissa Santos)

Chegando manso e cheio de bolsos em um colete, uma bengala, calçados Crocs, ele pergunta onde deveria se posicionar para as fotos. Silenciosamente, ele torce para que os retratos sejam feitos em pé. Mas já havia uma cadeira e uma sombra à sua espera. “Que sol lindo, parece Salvador”, disse para a equipe que, antes, organizava o espaço preocupada com o incômodo do calor paulista.

Mateus é uma árvore octogenária+2, cantor, compositor, violonista, parte troncal da música brasileira pela obra feita com Os Tincoãs. Em Angola, onde constituiu família, foi pesquisador cultural do Ministério da Cultura.

Apesar das deferências (chamam-lhe “Seu Mateus” aqui e acolá), sombra e assentos, ele caminha pela vida (e pela conversa que abre com o repórter) como a natureza dialoga com o tempo: em seu tempo — e isso, em um saguão de hotel em São Paulo, soa como um manifesto silencioso.

“Como é que a gente está? A gente está do jeito que a vida dita”, diz serenamente, analisando a primeira pergunta da entrevista.
Nascido em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, ele era invadido quando pequeno pelos toques dos ogãs do candomblé e pelo sino e órgão da igreja. “Cachoeira devia ter dois, três carros. O toque ecoava”, desenha.

Muito antes de Aleluia nascer, em 1943, Cachoeira já era um dos principais centros de cultura afro-brasileira do país. A cidade, a 116 quilômetros de Salvador, cresceu às margens do Rio Paraguaçu, onde, a despeito da escravização, tradições de matriz africana encontraram abrigo e continuidade — nos terreiros, nos cortejos, nos cantos, nos saberes transmitidos entre gerações. E é em suas águas, “líquido amniótico”, segundo Mateus, que devemos entrar para ouvir Mateus e seu Mateus Aleluia.

“É uma grande cabaça, né?”, ele começa desenhando o mapa do Recôncavo: na parte de cima, Cachoeira; no meio, o Paraguaçu; na base, São Félix. “Essa cabaça é o útero materno onde todos fomos gestados”.

Ele continua:
“A parte de cima é como se fosse Obatalá, a de baixo Oduduwa. Uma cabaça humana, onde fomos nascidos. Nesse útero natural, útero espontâneo, útero da vida, útero cósmico, pré-cósmico, pós-cósmico. Entendeu?”, diz musicado, quase-rap, como também faz em faixas como “Doce Sacrifício”, “Filho” e “Acalanto” — que, juntas, formam os 14 minutos do segundo movimento do novo disco que é quase todo baseado no dedilhar do violão de Mateus (“O violão dele é como se fossem os trilhos e ele é a própria locomotiva”, brinca Tadeu).

Conversas como essas foram registradas por muito tempo por Tenille Bezerra, responsável por documentar o compositor em Aleluia – O canto infinito do Tincoã, de 2020.
O contato e o filme sofreram mudanças de direção: inicialmente, a diretora queria registrar a obra do trio — mas o trio foi submergindo na superfície e ela resolveu se aprofundar em Mateus.
Depois, para sua surpresa, os dois desenvolveram uma amizade confessional e profissional: quando olhou pra si, estava imersa na obra e na carreira de um artista que, reservado (ou “recuado”, como ele mesmo diz) tinha muitas composições, ideias, movimentos, memórias para serem expostos em contraste com um mercado consumidor de estatísticas pouco otimistas para obras densas, longas.

Aos 82 anos, no disco ou fora dele, Mateus está confortável. Conta histórias que mostram gosto pelo ritual, pelo o culto. “Se não houvesse um culto, não teríamos todo um comportamento próprio de um tempo”, ele diz na entrevista; “Sinto a brisa em meu redor, piso o chão que me formou, fogo no meu coração. Choveu!”, canta em “Márua”.

“Ele é como um marinheiro ali no barco. Estamos na vela, mas ele quem comanda o leme”, diz em metáfora Tenille para explicar como foi a produção.
“Ele tem um pensamento muito provocador. Não é preciso inventar a roda, basta deixá-lo ser. Pode ser daí que veio a ideia de conforto que ele mencionou”, reflete.

Ele concorda:
“Você tem que se deixar levar da melhor forma possível e acreditar que a natureza é soberana. Acreditar na vida, nas várias pessoas que você não sabe como é que elas chegaram ou saíram”, aponta.

Como se estivesse sempre pulando entre passado, futuro e presente, ele segue metafisicamente firme:
“É possível, a gente vai se alimentando dessa baía profunda, de todos os santos, todos os deuses, todos os espíritos, de todos os caboclos, de tudo quanto existe”.

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