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As várias faces de Linn da Quebrada

As várias faces de Linn da Quebrada

A cantora foi destaque na 13ª edição da Billboard Brasil

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Linn da Quebrada

Você tem medo de quê?”, pergunta Linn da Quebrada, momentos antes da nossa entrevista, realizada no Zud Café, um simpático espaço em Santa Cecília (centro de São Paulo). “Depende. De ratos, da morte…”, respondo. “Eu tenho medo de mim mesma”, dispara ela.

O início, digamos, filosófico, se mantém durante a conversa, que traz ainda momentos engraçados e reveladores.

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Lina Pereira dos Santos, 34 anos, é uma batalhadora. Criada em meio a uma família evangélica no interior de São Paulo, descobriu-se travesti ainda na adolescência. Veio morar na capital paulista e começou a trabalhar em boates. Linn da Quebrada nasceu em 2016 e seu processo de transformação foi acompanhado pelo público, seja em filmes ou em reportagens.

Linn participou da edição 22 do “Big Brother Brasil”, da Rede Globo, e quase chegou ao prêmio final. No ano passado, contudo, sofreu com uma depressão e chegou a ser internada. Problema controlado, ela agora prepara um novo disco para ser lançado em 2025. Que promete ser ousado. A produção é de Fernando Catatau, guitarrista do Cidadão Instigado e conhecido por seus experimentos sonoros no terreno da psicodelia e da música brega dos anos 1970.

“Vai ter até uma releitura nesse estilo, mas é segredo”, diz Linn. Na entrevista, ela fala do processo e de como vê a música da comunidade LGBTQIA+ ganhando espaço. De Linn não tenho medo, somente admiração.

Antes de a entrevista começar, você falou do medo das pessoas de hoje –artistas ou não– em se arriscar. Mas é admirável a luta de cantoras como você, Liniker, Pabllo Vittar, Gloria Groove e Assucena pelo reconhecimento artístico além da comunidade LGBTQIA+.

Mas cansa ser uma luta, né? Embora exista um avanço, a gente se depara sempre com um olhar conservador, quando são feitas as mesmas perguntas e são lembradas as mesmas coisas.

Você fala sobre retrocesso e me lembro de uma conversa que tive com a cantora Assucena, anos atrás. Que parece que algumas intérpretes da comunidade LGBTQIA+ são escolhidas mais pela necessidade de preencher uma cota do que pelo talento.

Sim. Mas também vejo que há uma relevância e um público que confirma e legitima isso. Estamos sendo acionadas porque um público provou que essa demanda forma uma necessidade do mercado.

Então eles falam: “Olha, isso vende. Vamos falar.” Mas, ao mesmo tempo, sinto como se fosse um interesse temático –o que acho um perigo. Por exemplo, quando falam que é uma música LGBT. O que seria uma música LGBT? Minha música, a música de Assucena, de Pabllo Vittar, de Liniker e Gloria Groove têm repercutido. Somos artistas que têm formado uma cena, mas não que haja algo em comum na nossa musicalidade.

Em geral, é como se a nossa identidade tomasse a frente de tudo. “Ah, então é travesti e cantora. Quer dizer que primeiro eu sou travesti?”.

Um dos versos que mais adoro do seu repertório é “filha das travas, obras das trevas.” Poderia falar a respeito?

Uma das partes que mais gosto dessa música fala que sou “uma lenda, uma maldição, um feitiço ou uma canção.” Eu sinto que ser a nova Eva é me entender como novo sagrado. Que vem de um lugar do profano, que é a minha identidade, a minha vida de travesti, ser fruto da minha comunidade. E nesse lugar por muito tempo foi-se cultivado um certo medo de travestis, né? Hoje em dia eu sinto que esse lugar foi bastante diluído pela nossa presença nos veículos de informação.

Mas que venho desse medo, desse lugar onde as pessoas nos colocavam num lugar das trevas. Sou de uma geração que criava lendas sobre travestis. Que escondiam gilete entre os dedos para rasgar o rosto das pessoas. Muito do que aconteceu era uma resposta à violência a qual éramos submetidas. Por que esses corpos tinham de se munir com essas armas? Para se defender! Nós sempre fomos muito atacadas.

Nossos corpos são constantemente atacados e rejeitados. E muitas vezes o trabalho sexual é a única forma de sobrevivência. E se é forma de sobrevivência é porque existe uma demanda.

Mas a história da gilete é meio falaciosa. Como aquela da loira que atacava a gente no banheiro, lembra?

Completamente! Eu batia nas portas e dava descarga três vezes para ver se ela aparecia. Se eu fosse loira, eu seria a loira do banheiro.

Me encanta muito teu conhecimento de MPB. Teus pais ouviam muita música?

Não tive uma infância marcada pela MPB, mas sim pelo forró. Todo final de semana era marcado por festas regadas a forró. Eu escutei mais Sandy & Junior e a trilha sonora de “As Chiquititas”. Mas adorava escrever, queria ser escritora. Queria inventar histórias porque eu gostava de alguma maneira de imaginar, talvez fosse um modo de construir uma realidade possível, né?

Só existe aquilo que a gente consegue imaginar. Então eu sinto que imaginar certas coisas é uma ferramenta muito preciosa para que a gente consiga tornar essas fantasias realidade de alguma maneira. Sonhei ser travesti antes de ser travesti. A gente não consegue criar qualquer coisa sem imaginar.

Quando você se descobriu mulher?

Experimentação, faltava espaço dentro daquela masculinidade maneira, né? O processo surgiu de um desconforto e o desejo de me transformar: ser presente dentro da minha própria pele, dentro do meu próprio corpo, da pele para dentro.

Ser artista, para mim, é criar sobre a minha própria existência. Tenho criado sobre o meu próprio corpo. Tanto que o meu processo de transição é um processo que foi assistido, né? Sou a monstra e a médica, criatura e cobaia das minhas próprias experiências. Fui me experimentando e o meu processo identitário surge através da experiência.

Vamos falar de música? Como a Linn vem em 2025?

Estou falando um pouco mais de amor, estou me dando a possibilidade de amar, estou pensando nas minhas relações. Estou mais simbólica. Convidei para fazer a direção do meu álbum comigo o Fernando Catatau [líder do Cidadão Instigado, grupo que mescla psicodelia e música popular romântica dos anos 1970].

A Dominique, minha percussionista, uma musicista fantástica que eu amo e me conhece muito, é uma pessoa muito presente nessa direção. Já o Catatau é uma enciclopédia ambulante de música brega dos anos 1970. Olha, estou pensando até na releitura de uma música daquele período. Quero trazer um pouco da linguagem do brega, da coisa do romance. Estou precisando de uma sofrida, galera!

Última pergunta…

Sim, estou solteira! Quer dizer, mais ou menos.

Tico-tico no fubá, como diria Silvio Santos. Então, essa foi a penúltima pergunta. A última seria sobre a sua depressão.

Olha, como é aquele meme… Eu acho que da Katy Perry. Falam: “E esse brinco, é depressão?”  Nada, ela já superou… Sinto que esse processo de saúde mental é um processo de autoconhecimento.

Justamente por reconhecer minhas vulnerabilidades, minhas fragilidades e os “nãos” pelos quais eu passei por cima, muito por causa também das negociações com o mercado. Por exemplo, “I Míssil”, do disco “Trava Línguas”, é tida como uma canção de amor. Mas ela fala da minha relação com o mercado [uma palinha da letra: “Socorro em sua direção/ Frio na espinha, a boca seca, tua boca na minha/ Escuridão, vazio/ Eu mudo a rima calada/ Sem rumo eu digo muito, sem dizer mais quase nada/ É quase nada, é quase nada…]

Venho me transformando nesse processo e sou transformada também pelo mercado. Ao passo que também transformamos o mercado com o decorrer dos anos. E isso, de alguma maneira, foi o início do meu adoecimento psicológico e emocional.

Você se internou numa clínica, certo?

Sim, fui para uma clínica e antes disso fiz terapia. Não me permitia adoecer, não me permiti reconhecer que estava adoecendo. Mas esse lugar [a clínica] me fez perceber que estamos adoecendo porque o nosso meio tem nos adoecido e está doente também, né? As relações estão adoecidas. E se a gente não reconhece isso, adoece as pessoas à nossa volta.

Você teve de se reconstruir?

Estou tendo de me reconstruir: reconhecer as rachaduras, as ruínas e o que precisa morrer. Passo por um processo de abandonar velhos padrões adoecidos nas minhas relações e admitir que eu não sei viver. E quando nos curamos, curamos também as pessoas à nossa volta.

No início da entrevista, você disse que tinha medo de você.

Sou muito perigosa, gente. Me acostumei a ser a minha pior amiga. Quando eu sou ótima, eu sou ótima. Mas quando eu sou ruim, eu sou melhor ainda.

Aprendi a querer deixar as coisas mais soltas, eu evitava muito desconforto nas relações. Havia um desequlíbrio entre a Lina Pereira e a Linn da Quebrada. Mas quando fui para o “Big Brother”, por exemplo, a Lina Pereira ficou maior a ponto de os meus amigos falarem que faltou a Linn da Quebrada. Hoje elas estão bem.

Eu fiz até uma tatuagem que é meio que um pacto entre as duas. Eu sinto que elas estão mais uma vez se fundindo e que eu tô conseguindo ser inteira nesse sentido.

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