Os números de Marília Mendonça
Como a cantora transformou a sofrência em mania nacional com suas músicas
Matheus Boaba é um jovem consultor financeiro baseado em Goiatuba, cidade localizada a 174 quilômetros de Goiânia. De tempos em tempos, ele vai para a capital do estado de Goiás atender aos seus clientes, boa parte instalados num quadrilátero repleto de escritórios de astros do universo sertanejo. Mas, quando atendeu a reportagem da Billboard Brasil, meses atrás, Boaba só recordou o período em que tinha um restaurante chamado Sabor da Picanha, onde dava guarida e servia comida e bebida de graça aos emergentes talentos da bota e do chapéu.
Muitos fizeram história –Gusttavo Lima, por exemplo, tocou lá. Poucos deles, no entanto, causaram tanto impacto no cenário da música brasileira como uma cantora tímida e de personalidade forte que entoava sucessos do universo caipira intercalados com músicas de sua própria lavra. Uma jovem chamada Marília Mendonça. “A gente morava praticamente na mesma vizinhança. Eu chamo a mãe dela, dona Ruth, de tia”, relembra o consultor.
O legado de Marília
A trajetória da cantora e compositora, no entanto, superou qualquer previsão feita por clientes de carne macia e bebida gelada. Morta num desastre aéreo em 5 de novembro de 2021, aos 25 anos, ela segue ainda hoje batendo recordes que continuamente desafiam qualquer previsão da crítica e de executivos do mercado musical. Em maio do ano passado, Marília alcançou a marca de 10 bilhões de reproduções no Spotify. São 12 milhões de pessoas ouvindo as criações dela na plataforma de streaming todo mês.
“Sua trajetória mostrou comforça a importância das mulheres ocuparem espaços que, antes, eram vistos como territórios masculinos, e de dar voz feminina ao gênero de maneira autêntica. Como sempre soube circular com maestria por outros gêneros, como rap, funk, pagode, axé, arrocha e pop, ela contribuiu para diminuição das barreiras entre gêneros, tanto do ponto de vista de produção quanto de consumo”, diz Carol Alzuguir, Head de parcerias com artistas, gravadoras, selos e distribuidoras no Spotify no Brasil.
Os números do reinado
De 2019 a 2022, ela foia artista brasileira mais ouvida na plataforma de streaming. Os números de sua gravadora, a Som Livre, também são expressivos. São 29,1 bilhões de plays ao redor do mundo, entre streams e views. O lançamento póstumo “Decretos Reais”, de maio de 2023, atingiu mais de 1,5bilhões de plays (894,3 milhões de streams e 574,9 milhões de views).
Só a faixa “Leão” tem 434,2 milhões de streams e 319,1milhões de views. A cantora figura ao lado de Michael Jackson e Elvis Presley no rol de astros cuja popularidade se manteve intacta após a morte. Por exemplo: na lista de canções mais tocadas em 2023 divulgada pela Crowley, empresa que afere audiência das rádios, a canção “Leão” figura em terceiro lugar.Foram 64.998 execuções, perdendo somente para os super astros Gusttavo Lima (82.502 com “Desejo Imortal”) e Simone Mendes (73.723 com “Erro Gostoso”). A faixa lançada originalmente em parceria com o rapper Xamã também nunca saiu das cabeças do Billboard Brasil Hot 100 desde o lançamento dos charts, em setembro passado, posicionando Marília Mendonça no Artistas 25, que elenca os mais ouvidos do país.
A sua abrangência é tão importante quanto os números de execução. Marília é um dos raros casos de artista popular que atingiu músicos de diferentes vertentes: de nomes do primeiro escalão da MPB a feras do forró, de astros do heavy metal ao pop, todos simpatizam com a obra de Marília Mendonça.
O país da sofrência
O estilo musical perpetuado por Marília Mendonça ganhou o nome de “sofrência” –o mesmo adjetivo, por exemplo, dado ao arrocha baiano, que também descende da seresta e traz letras que falam de amores que dão errado. Mas o pontapé inicial se deve a uma estratégia bem pensada. Empresário da dupla César Menotti e Fabiano e o responsável pelo estouro comercial da banda Calypso, Pedro Mota percebeu que a musicalidade da Marília se identificava bastante com público do Norte/Nordeste, que consumia muito mais o forró romântico, o brega e o arrochado que no Centro-Oeste, onde estava baseada.
“É inegável que a periferia consumiu primeiro a Marília e, posteriormente, ela quebrou as barreiras e atingiu todas as classes sociais, que se identificaram com suas letras”, pontuou. Marília ganhou primeiramente o Nordeste e, depois, foi descendo até dominar o país.”