Hyldon celebra meio século de clássico do soul e ganha documentário
Ele forma, ao lado de Tim Maia e Cassiano, a Santa Trindade do black brasileiro
Embora a conversa seja sobre “Na Rua, na Chuva, na Fazenda”, seu disco de estreia, que completou meio século de vida em abril passado, Hyldon está empolgado demais para se ater somente ao passado. “Quero falar também sobre o meu novo disco. HYLDON JIDO23 tem produção do Adrian Younge, um americano que gosta muito do meu trabalho”, diz ele, referindo-se ao produtor e criador do selo musical Jazz is Dead.
“Ele criava a partir de elementos da minha música e eu tinha de compor em cima disso. Fiquei uns quatro meses trancado, parecia um zumbi”, prossegue o baiano de nascimento e carioca de coração. O disco traz ainda uma das últimas participações do baterista Ivan Conti, o “Mamão”, morto em 2023. “Poxa bicho, o Mamão tocava muito. Pena que não escutou o disco.”
EU VIM DA BAHIA CANTAR
“Na Rua, na Chuva, na Fazenda” é o álbum de estreia de Hyldon de Souza Silva, nascido em Salvador e criado na fronteira da Bahia com Pernambuco. Quando tinha sete anos, sua família mudou-se para o Rio de Janeiro, onde iniciou sua carreira musical. Durante a adolescência, descobriu seu talento para a composição, tendo participado de discos dos Fevers –seu primo, Pedrinho, era guitarrista da banda– e composto para o repertório de Jerry Adriani e Wanderley Cardoso. Numa dessas incursões por esse universo conheceu um novato cantor pernambucano, chamado Ivanílton. “Eu estava na CBS quando ele apareceu, em busca de uma chance. Quando ele me disse que não sabia compor, sentei ao lado dele e criamos juntos”, diz ele. Hyldon e Ivanílton –que depois seria conhecido com o nome de Michael Sullivan– chegaram a integrar o grupo os Nucleares.
SUINGUE BALANÇO FUNK
A fama de Hyldon como musicista rendeu o convite para participar da banda de apoio de Os Diagonais, trio formado por Amaro, Camarão e Cassiano –que mais tarde seria o maior nome da música soul brasileira. Foi através dos Diagonais que Hyldon conheceu Tim Maia. “Tem muita gravação minha daquele período. Eu, por exemplo, toco guitarra em ‘Festa de Santo Rei’, do Tim”, conta o cantor e compositor. Em 1970, ele foi contratado pela gravadora Philips, inicialmente para criar canções e produzir novos talentos –aqui a lista tem Erasmo Carlos, Wanderléa, Odair José e Diana, entre outros. Em 1973, iniciou as gravações do que seria “Na Rua, na Chuva, na Fazenda”. O curioso é que elas só foram iniciadas porque o artista que iria gravar naquele dia não conseguiu chegar a tempo no estúdio. Hyldon aproveitou a banda “da casa” (nada menos que o Azymuth, formado por músicos que são referência na música instrumental brasileira) e fez um dos discos mais importantes do soul nacional.
“Na Rua, na Chuva, na Fazenda” não apenas tem o balanço típico da música preta –que combina elementos do soul americano com gêneros como samba e forró, por exemplo–, mas traz uma sonoridade bucólica. Hyldon fla não somente de amor, mas também de natureza e da vida no meio do mato. “Fui criado no meio da natureza, é um tema recorrente nas minhas canções”, reconhece. Há canções emblemáticas, como a faixa-título, “As Dores do Mundo” e “Na Sombra de uma Árvore”, mas balanços irresistíveis como “Guitarras, Violinos e Instrumentos de Samba” e a balada “Sábado e Domingo”. Um trabalho tão contemporâneo que volta e meia é recuperado por artistas do pop nacional –Kid Abelha e Jota Quest, por exemplo, então entre os nomes que gravaram Hyldon.
Hyldon será tema também de um documentário, que será exibido pela primeira vez no In-Edit Brasil, festival que se dedica a documentários musicais, e que começa no mês de junho. “Hyldon – As Dores do Mundo” tem direção de Emílio Domingos (que também fez documentários sobre o Chic Show e a Black Rio) e Felipe David. “Foi uma arqueologia em busca dos resquícios do Hyldon pré disco, um retrato do artista quando jovem. Fala de um grande músico, compositor e produtor e de um disco que surgiu com muita dificuldade para ser gravado e lançado porque a gravadora queria que Hyldon fosse somente compositor”, diz Domingos. “Ele desafiou a indústria.”
O documentário centra foco não apenas no soul, mas também nas canções que ele fez baseado em suas experiências amorosas e na experiência em lidar com as gravadoras. “A música foi a melhor amiga de Hyldon diante desse mundo todo”, complementa Domingos. Um disco para se ouvir e um filme para se assistir, seja na rua, na chuva e na fazenda.