A relação de afeto entre Criolo e Marcelo D2, do rap ao samba
Parceiros musicais, os cantores posaram juntos para a capa da Billboard Brasil
O número 358 da rua Justo Azambuja, no Cambuci, bairro da região central de São Paulo, era uma escola conhecida pelo imponente nome de Liceu Siqueira Campos. Há tempos desativada, ela hoje abriga uma série de microorganismos, que vão desde ateliê de moda a estúdios de artes plásticas e fotografia. A escolha desse local como cenário de capa da Billboard Brasil –que documenta o encontro de Marcelo D2 e Criolo– é simbólica, porque os dois se destacaram em estilos musicais que atingiram o status de arte depois de anos marginalizados.
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O rap surgiu depois de cortes do governo norte-americano ao ensino musical, o que na década de 1970 obrigou os jovens a criar rimas e utilizar pick ups e discos de vinil como instrumento. E o samba, gênero de matriz africana, que nasceu nos terreiros do Rio de Janeiro –as famosas reuniões na casa de Tia Ciata, onde foi criada a primeira composição classificada como tal. O gênero, aliás, é outro elo entre o rapper carioca e o paulistano. Ambos despejam as rimas de modo cadenciado, “sambístico”, ao contrário da dicção dura e reta de boa parte dos rappers brasileiros –e não há nada de errado nessa opção.
Criolo e Marcelo D2 também se lançaram no samba propriamente dito. Em 2017, o paulistano soltou “Espiral de Ilusão”, álbum dedicado à sua quebrada, no qual desfilou melodias inspiradas em mestres como Nelson Sargento e Monarco. D2, por seu turno, já tinha pesquisado o gênero em “À Procura da Batida Perfeita”, de 2003, e em junho deste ano soltou “IBORU”, álbum no qual incursiona pelas raízes afro-brasileiras de sua música.
Semanas antes da apresentação de Criolo no The Town (que contou com a participação de Planet Hemp), eles se reuniram para a sessão de fotos e para a entrevista desta reportagem. Criolo foi o primeiro a chegar ao estúdio, com seu contumaz jeito arredio –que foi sendo dissipado aos poucos, a ponto de cantar “Aquarela Brasileira”, de Silas de Oliveira, e um trecho de uma composição que fará parte de seu próximo disco de samba.
Pouco depois, Marcelo surgiu, com seu gingado de malandro e sua simpatia. O encontro da dupla se sacralizou ao som de cânticos afro-brasileiros, em especial o dedicado ao orixá Ogum. Nessa hora, todos saíram do estúdio e deixaram os dois se conectarem com a divindade homenageada.
O clima de amizade antiga e até de reverência entre os dois se sobrepõe a uma história inusitada. Enquanto o Planet Hemp fazia sucesso pelo Brasil, Criolo dormia em cima de seus cadernos com letras de música. Literalmente.
“O Planet eu vim a escutar bem depois, porque, nesse período de explosão e ebulição deles, eu estava dormindo em cima dos meus cadernos de rap. Eu morava numa casinha com um quarto pequeno, que tinha 1,60m de altura. Só cabia o meu colchão e os meus cadernos. Eu dormia sobre muitos cadernos e folhas, e folhas, e folhas”, lembra Criolo. “Algumas dessas músicas, depois, foram para o ‘Nó na Orelha’ [seu álbum de estreia, de 2011].”
Quando a carreira de Criolo finalmente deslanchou, ele estava com 35 anos. Já tinha 22 de caminhada. E conta que viu a oportunidade de gravar um disco como seu “último momento”.
“Chega uma hora em que você fala: ‘Deixa eu gravar isso aqui, porque eu não sei quando terei essa oportunidade de novo, ou se ela vai ser única na minha vida. Parei tudo e falei: ‘Esse é meu último ato. É meu último momento, e eu vou fazer o melhor. Vou achar o meu limite e vou entregar tudo. É preciso ter senso crítico. Se algo diferente não aconteceu, então não atrapalha o outro que está chegando.”
O último ato, ainda bem, não foi o último. Vieram depois dele muitas músicas, muitos discos, muitos shows –e a parceria e amizade com D2 e o Planet Hemp. “É o sentimento, é o coração que pede. E essas pessoas conquistam isso também”, diz, sobre o afeto pelos companheiros, com quem dividiu a faixa “Distopia”, no novo álbum do Planet.
O Planet Hemp surgiu no mercado no início dos anos 1990, com uma mistura explosiva de rock, hardcore, rap, reggae e samba, além de um discurso pró-cannabis. Na década seguinte, o quinteto encerrou suas atividades por tempo indeterminado, e Marcelo D2 acentuou ainda mais suas fusões musicais.
Numa dessas andanças, descobriu um rapper chamado Criolo Doido. “A minha relação com o Criolo é de muito afeto”, retribui Marcelo. “E o objetivo da gente no The Town foi entrar e fazer o máximo de barulho possível. Eu achei até engraçada essa combinação, porque nós somos uma banda pesada, e o Criolo tem uma linha mais groovada. No show, cada um fez o caminho do outro.”
Criolo acrescenta: “Foi emocionante essa intervenção com o Planet. A feitura desse show foi delicada, respeitando as histórias e os clássicos. Minha convivência com eles é incrível, sempre foram extremamente respeitosos comigo, amorosos. Quando eles pisam no palco é bom demais, eles são muito talentosos. Não dá”.
O mesmo amor pelo samba
O samba faz parte do DNA musical de Marcelo D2 e de Criolo. “Eu e ele temos o mesmo amor pelos veteranos e respeito pelos mais velhos: Monarco, Nelson Sargento, Wilson das Neves… No samba, é preciso sempre pisar devagar e com reverência. Mas, ao mesmo tempo, eu e ele queremos fazer algo diferente, porque somos de vanguarda. A gente quer beber da fonte e levar para a frente.”
“Samba é da vida”, completa Criolo, dando pistas de que seu próximo álbum será dedicado ao gênero, mas dizendo que ainda não está pronto para gravá-lo. O processo, ele conta, é lento e sensível. “Paro para olhar o que eu tenho de material. Isso me convence? Isso me emociona? Não, então não é a hora. Aí vou viver mais um pouco.”
As raízes africanas na música são símbolo de resistência para ambos. “Cada um foi achando o seu o seu caminho, né, cara? Na música preta norte-americana, tudo sai do blues. Inclusive o rap, que também tem uma luta e uma resistência forte para caralho. Eu não acho que o texto da gente foi mais livre aqui, não. Demorou tanto tempo para terminar a escravidão”, diz D2.
Criolo destaca o valor da mistura. “A arte que a gente produz revela um tanto da gente. Não é uma coisa que você escolhe, não é uma gaveta que você abre. Essa pororoca está na gente. Em algum momento, isso vai ser expressado com um toque de tambor diferente. Se você pensar na música mundial, tirando a africanidade não tem música no mundo todo. Tudo é célula desse lugar.”