A previsão era de chuva forte para a noite de 6 de novembro de 1993, no Rio de Janeiro, mesma data em que Madonna se apresentaria pela primeira vez na Cidade Maravilhosa. O show estava marcado para o estádio do Maracanã e receberia o maior público da carreira da cantora até então: 120 mil pessoas. Ela já tinha feito um show apoteótico no Morumbi, em São Paulo, três dias antes, mas não contou com o percalço metereológico.
Assim, a Rainha do Pop surpreendeu geral aparecendo no palco do Maracanã às 15h, cinco horas antes do marcado, quando os portões já estavam abertos, para uma inesperada passagem de som. Mas não era qualquer passagem de som (quando os músicos testam os equipamentos e ensaiam algumas músicas do setlist). Como tudo o que Madonna faz é diferenciado, a tal passagem contou com técnicos posicionando guarda-chuvas em novas marcações, além de bailarinos de apoio com rodos e panos de chão. Nada disso, originalmente, fazia parte da “The Girlie Show”, turnê que ela trouxe ao Brasil na época. Mas, perfeccionista que é, Madonna queria fazer bonito mesmo debaixo d’água, transformando o dilúvio em performance.
Ninguém deve ter percebido que esse era o intuito, já que ver Madonna com roupas “de civil” e pouca maquiagem horas antes do início do espetáculo era algo inimaginável. Em um tempo em que não existia internet nem redes sociais, celebridades eram inacessíveis, e todo mundo tinha uma história fantasiosa para contar sobre elas No início dos anos 1990, Madonna era a mulher mais famosa do mundo e figurava no “Guinness Book” como a mais bem-sucedida artista feminina de todos os tempos, tendo vendido cerca de 100 milhões de discos até então. Portanto, pense no peso dessa surpresa ligada ao contexto de uma época. O temporal previsto para aquele dia? Nunca aconteceu.
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Frenesi
Madonna desembarcou no Brasil pela primeira vez em 1º de novembro de 1993, no aeroporto de Guarulhos, e de lá seguiu para o antigo Hotel Caesar Park, no centro de São Paulo. Na chegada ao país, foi combinado que apenas um policial federal carimbaria os passaportes de toda a equipe, dentro da aeronave, para evitar confusão. Mas, chegado o grande dia, cerca de 30 agentes teriam aparecido acompanhados até de familiares para conhecer a Rainha do Pop. “Tivemos que explicar com calma que não podia ser dessa forma, que não era assim que funcionava com uma estrela daquele porte”, conta Jeffrey Neale, um dos produtores que ficaram responsáveis pela estadia e vinda da artista, ao lado da produtora e cineasta Monique Gardenberg.
Poucas horas depois, a rua Augusta teve que ser interditada pela Polícia Militar, quando 2 mil pessoas se aglomeraram em frente ao hotel na esperança de ver a cantora de perto e conseguir um autógrafo. “Em São Paulo, foi muito difícil a locomoção. No primeiro dia, estávamos fazendo a logística das muitas bagagens trazidas por ela e pela equipe, que vinham em fileira. Aquela confusão lá fora [de fãs e malas], e Madonna aparece supersimpática no saguão”, ele lembra do momento inoportuno, aos risos.
Surto coletivo
Em 1993, Madonna promovia seu mais controverso lbum, “Erotica”, em que cantava prazeres femininos despidos de tabus. Sua imagem era frequentemente associada pelos críticos à promiscuidade. Nessa primeira vez, em São Paulo, teriam sido registradas mais de dez ocorrências de atentado ao pudor por parte dos curiosos. Tentativas de invasão ao hotel foram corriqueiras, enquanto mulheres faziam topless para as câmeras de TV. No prédio da frente, a então desconhecida atriz Mara Manzan (1952-2009) fez uma intervenção artística cuspindo fogo para fora da janela, usando apenas um tapa-sexo. A cena se repetiu por três noites seguidas.
Na saída rumo ao estádio do Morumbi, no dia do show, a multidão que interditou a região entrou em conflito com a polícia, e o carro de Madonna quase foi cercado.
Já a passagem da cantora pelo Rio foi bem mais tranquila, contando com o apoio da prefeitura para bloquear o acesso lateral ao hotel da mesma rede, o Caesar Park da praia de Ipanema, hoje desativado. Depois dos episódios caóticos na capital paulista, até uma sósia, Lena Cabral, foi contratada para despistar os fãs nas raras vezes em que a cantora saiu de sua suíte presidencial, uma delas com Jeffrey. “Ela colocou uma peruca preta e disse: ‘Você será meu namorado por um dia’”, ri. O disfarce não adiantou, e o passeio, que incluiu uma visita ao Corcovado, foi acompanhado por uma legião de paparazzi.
Disciplina
Das três vezes em que esteve no Brasil para se apresentar, Madonna tratou de desmistificar a imagem de bad girl, curiosamente o nome de um dos seus hits, em que canta “Garota má, bêbada às seis/ Fumou muitos cigarros hoje”. Quem a conhece, diz que não é nada disso. “Aquilo é a construção de uma personagem. A disciplina dela é impressionante, e há uma preocupação enorme com a sua saúde”, relata Patricia Galante de Sá, relações-públicas do Caesar Park na época.
Tanto em 1993 quanto em 2008 e 2012, quando também veio ao país com as turnês “Sticky & Sweet” e “MDNA”, Madonna trouxe seus próprios equipamentos de academia para o hotel, o que deve se repetir no próximo mês de maio, quando ela se hospedará no Copacabana Palace para o encerramento da “Celebration Tour”.
Além dos aparelhos de ginástica, Madonna leva em suas viagens chefs de cozinha que preparam suas refeições regradas, uma “gororoba de saúde”, diverte-se Patricia. Em 1993 e 2008, por exemplo, nenhum dançarino ou membro da técnica se alimentava fora do hotel. Somente bebidas industrializadas eram permitidas, o que excluía o suco de frutas e a água de coco da praia. Do serviço de quarto, só os alimentos cozidos do cardápio tinham sinal verde. “Eles não podiam se dar ao luxo de ter intoxicação alimentar e atrapalhar a turnê”, adiciona.
Cerca de 40 seguranças militares fazem a escolta da cantora sempre que ela está em turnê no Brasil, seja nos arredores do hotel, seja nos estádios onde se apresenta. Desses, mais da metade são de sua equipe fixa. Jeffrey conta que no Brasil eles usavam até codinomes e códigos cifrados para locomover a artista, que também é batizada com um desses apelidos para despistar imprensa e curiosos.
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Novos tempos
A relação de Madonna com o Brasil mudou com o passar dos anos. Quando não está em turnê, ela se dá ao luxo de se divertir por aqui sem o protecionismo usual. Ainda em 2008, no dia 21 de dezembro, Madonna encerrou os 45 shows da turnê em São Paulo e comemorou com todos os dançarinos no extinto Bar Secreto, em Pinheiros. A presença surpresa fez a balada ficar conhecida como “aquele lugar que a Madonna visitou”.
Em fevereiro de 2010, ela trouxe os filhos e curtiu o Carnaval em um camarote na Sapucaí, ao lado da ex-presidenta Dilma Rousseff, na época ministra da Casa Civil do segundo governo Lula. Um dia depois, esteve num show do Rappa, no Circo Voador, onde foi clicada tomando caipirinha num copo de plástico –bem gente como a gente.
Em 2017, quando veio para o casamento de seu empresário, Guy Oseary, em pleno Cristo Redentor, subiu o morro do Santo Cristo, no Rio de Janeiro, e fez fotos com militares das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora. Em duas ocasiões, 2012 e 2017, visitou Angélica e Luciano Huck, já que os apresentadores viraram amigos próximos. Tudo isso sempre acompanhada de perto pela atenção pública, claro.
“Ela não é uma cantora, ela é uma mulher de negócios, organizada, e tem em sua carreira diversos ciclos de reinvenção, de várias mulheres diferentes em uma. Eu já recebi inúmeros políticos e artistas famosos, mas nunca vi alguém como ela”, pondera Patricia. Em maio, 32 anos após sua primeira vez aqui, Madonna deve adicionar a seus momentos inusitados no Brasil o maior show de sua carreira. Uma garota de 65 anos que vai parar o país mais uma vez.