De capa nua ao amor livre: momentos em que Preta Gil foi à frente do tempo
No aniversário de 51 anos, celebramos o legado inesquecível da artista

Preta Gil nunca passou pela vida em tom baixo. Ela chegou rompendo moldes, seja no nome que virou manifesto, na nudez que virou bandeira ou no amor livre que virou discurso. Hoje, no dia em que completaria 51 anos, celebramos uma mulher que fez da própria existência um ato político e da arte um espelho para libertar outras vozes. Relembramos aqui os momentos em que Preta esteve à frente de seu tempo — e como, mesmo depois de partir, continua iluminando caminhos.
O nome como manifesto
A primeira batalha de Preta aconteceu antes mesmo do nascimento. Ao registrar a filha, que nasceu em 8 de agosto de 1974, Gilberto Gil ouviu no cartório que “Preta” não era nome de gente. Indignado, respondeu: “Se existe ‘Clara’, tem que existir ‘Preta’”. A solução foi acrescentar “Maria” para que o registro fosse aceito. Décadas depois, o episódio seria contado por pai e filha como um gesto de afirmação da identidade negra, quando o debate sobre negritude e orgulho racial ainda era restrito a círculos muito específicos.
Uma criança cheia de personalidade
Quando a família se mudou da Bahia para o Rio, durante o período escolar, ela foi chamada a soletrar o alfabeto para toda a turma. Tendo aprendido as letras em Salvador, sua pronúncia carregava o sotaque e as formas regionais baianas. Isso despertou risos entre colegas e até da própria professora. A mãe, Sandra Gadelha, irritada com o episódio, incentivou a filha a seguir falando como aprendeu e sugeriu que ela desse um “showzinho”. Preta obedeceu o conselho e, na hora do intervalo, esperou juntar umas 30 crianças, subiu num banquinho para exibir seu sotaque com orgulho, soltando letras pronunciadas como: “ê”, “fê”, “guê”, “ji”, “lê”, “mê”. Em conversa no programa “Que história é essa, Porchat?”, disse que considerou esse dia como sua estreia, seu primeiro show.
Amor livre e sexualidade sem filtros
Já na vida adulta, quando a maioria das celebridades preferia manter a vida amorosa sob camadas de mistério, Preta falava, rindo e com franqueza, sobre amar homens e mulheres, sobre relações abertas e sobre não se encaixar nas normas impostas. Em entrevistas de rádio, TV e jornais, normalizou a conversa sobre bissexualidade e amor livre — temas que, na época, raramente eram tratados sem preconceito ou sensacionalismo.“Eu sou bissexual assumida e não tenho medo de falar disso. A gente tem que viver o amor na liberdade, sem rótulos e sem medo”, disse em entrevista à revista “Trip”, em 2011.
Nudez como resistência — “Prêt-à-Porter”
Para lançar seu primeiro álbum em 2003, Preta decidiu posar nua na capa, vestindo apenas uma fita do Senhor do Bonfim. A imagem, poderosa e sem retoques, foi alvo de ataques, mas ela se recusou a recuar. O gesto, que hoje seria celebrado como body positive, na época foi visto como ousadia excessiva. Preta transformou a própria pele e curvas em discurso político, afirmando que seu corpo não era um erro, mas um território de liberdade.
“Sinais de Fogo”: a paixão platônica que virou música
Entre risos e confissões públicas, Preta contou que “Sinais de Fogo”, seu maior hit, nasceu de uma história real: a paixão platônica por Ana Carolina. “Corri atrás dela loucamente… Ela me deu toco atrás de toco”, disse certa vez. Ana Carolina, por sua vez, reconheceu: “Não ficamos, mas eu fiz canções para ela”. A relação, intensa mas não correspondida, deu origem a uma música que marcou a geração e se tornou símbolo de afetos não lineares, celebrando o amor em todas as formas.
Caixa Preta — representatividade na TV
No início dos anos 2000, Preta comandou o programa Caixa Preta, na TV, acompanhada das Pretetes, que eram assistentes de palco negras. Ali, discutia temas como diversidade e cultura negra, muito antes de “representatividade” virar palavra de ordem no mainstream. Ela falava em “colorir a TV brasileira” quando o padrão televisivo ainda era quase totalmente branco. O formato, híbrido de entrevistas e música, foi pioneiro em abrir espaço para artistas e vozes negras no horário nobre.
Bloco da Preta — Carnaval como palco de inclusão
Quando lançou o Bloco da Preta no Rio, em 2010, criou mais que um trio elétrico: abriu uma avenida para a celebração da diversidade. Com repertório que ia do axé ao pop, o bloco virou ponto de encontro para corpos livres, bandeiras LGBTQIA+, fantasias exuberantes e muito glitter. Preta convidava drags, artistas trans, músicos negros e independentes para dividir o palco quando isso ainda não era tendência. Para ela, arte e ativismo nunca foram áreas separadas. A folia era também um manifesto de que Carnaval é espaço de todos, independentemente de corpo, cor ou orientação sexual.
Mynd — Empreendedorismo e inclusão
Longe dos palcos, Preta também foi visionária nos negócios. Co-fundou a Mynd, agência especializada em marketing de influência, que tem um olhar dedicado também a artistas negros, LGBTQIA+ e de corpos fora do padrão. Num mercado dominado por um recorte homogêneo de influenciadores, ela injetou diversidade e mostrou que representatividade também gera resultado comercial.
Prêmio Potências Negras — pioneirismo e iconicidade
A Preta empresária incentivou amplamente a criação do Prêmio Potências Negras, que — desde 2022 — reconhece e celebra o trabalho de profissionais negros em diversas áreas, como entretenimento, esporte, cultura e mercado publicitário. A iniciativa, produzida pela Mynd, busca promover a diversidade cultural e fortalecer narrativas historicamente marginalizadas. Preta Gil, além de ter sido uma das apresentadoras do evento, já recebeu o prêmio na categoria “Potência do Ano”.
Lições sobre o câncer
Em 2023, ao receber o diagnóstico de câncer de intestino, Pretinha decidiu abrir cada etapa do processo para os fãs: exames, cirurgias, quedas e vitórias. Tornou-se referência de acolhimento, mostrando que vulnerabilidade também é força. Recebeu mensagens de milhares de pessoas que, inspiradas por sua franqueza, buscaram diagnóstico precoce.
Morte sem tabu
Nos meses finais, Preta falou sobre finitude sem medo, descrevendo a morte como parte natural da vida. Com serenidade, deixou recados de amor para família, amigos e fãs. Naturalizou um tema que muitos evitam, transformando a própria despedida num gesto pedagógico e afetuoso. “Não tenho mais aquela angústia. Mas a doença humaniza de verdade a morte, te aproxima muito da morte. E você faz uma desconstrução desse tabu”, disse em entrevista a Pedro Bial.