Faz pelo menos cinco décadas que a música de Milton Nascimento me encanta e me apresenta um enigma: como explicar, traduzir em palavras algo tão lindo? Como definir aquela combinação sui generis de música regional brasileira e jazz, rock e pop internacionais, world music e cancioneiro latino?
Por exemplo, entendo as motivações das sinfonias e concertos de Ludwig von Beethoven (1770-1827) pelos manuscritos do compositor clássico alemão ou através de explanações de sua obra feitas por regentes como Daniel Barenboim. O jazzista Miles Davis (1926-1991), por seu turno, deu pistas de sua formação musical através de discos e depoimentos. Ex-aluno da conceituada Juilliard School, de Nova York, ele assimilou –e explicou o porquê disso– todas as revoluções musicais que afetaram sua sonoridade: do bebop ao jazz, da fusão com o rock à incursão com o pop e o soul.
Milton Nascimento é indecifrável, em parte por causa de seu próprio temperamento. Tímido até à medula, fala pouco sobre seu processo de criação nas entrevistas que dá e seus raros comentários nunca dão muitas pistas sobre como criou aquelas harmonias vocais e instrumentais. Muito do que se revela sobre ele vem de acólitos de primeira hora.
A cantora Elis Regina (1945-1982) comparou sua voz à de Deus; Maurice White (1941-2016), criador do Earth, Wind & Fire, maior grupo de soul/funk de todos os tempos, confessou que a ideia de criar uma banda com vocais em falsete –sabe aqueles agudinhos? Pois é.– surgiu depois dele ter escutado Milton em “Native Dancer”, disco de 1975 do saxofonista Wayne Shorter (1923-2023) –até então o grupo de White valorizava mais a parte instrumental. E por falar em jazz, o que dizer dos elogios do tecladista e maestro Herbie Hancock? “As melodias, letras, harmonias, arranjos e a voz de Milton tocam o coração das pessoas no mundo todo”, derramou-se.
Conheci Milton de maneira errada. Quando tinha quinze anos e uma mesada digna para comprar pelo menos um disco por mês, preferi a pauleira de Iron Maiden e Judas Priest a canções como “Nos Bailes da Vida” e “Coração de Estudante” –estávamos nos anos 1980 e a aproximação dele por um som mais “limpo” e antenado aos padrões de produção daquele período não me atraiu. Foi preciso então que a EMI relançasse a discografia de Milton numa edição remasterizada nos estúdios Abbey Road, em Londres, para que pudesse, enfim, me encantar sua obra.
A música de Milton Nascimento é sui generis. Não há, na música popular brasileira, alguém tão multifacetado quanto esse carioca de nascimento (é natural do bairro da Tijuca) e que adotou Minas Gerais como sua pátria. Muita dessa versatilidade vem das múltiplas influências que assimilou ao longo dos anos. Sua mãe de criação foi aluna do compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959), o que me faz lembrar da introdução de “Cigarra”, música que ele e o letrista Ronaldo Bastos criaram para a cantora Simone e que traz um pouco da combinação de música erudita com a regional, eternizada pelo autor carioca.
Milton tinha quatro anos quando ganhou uma sanfona e treze quando passou a se apresentar num grupo de baile de Três Pontas, em Minas Gerais, para onde havia se mudado. Os tais “bailes da vida” ajudaram a moldar sua personalidade musical versátil. Na época, ele fazia parte do grupo musical W’S Boys, onde se destacava também um certo Wagner Tiso.
Milton mudou para Belo Horizonte no início dos anos 1960, onde passou a se dedicar com maior afinco à criação de canções. Em 1962 escreveu sua primeira música, “Barulho de Trem”.
Posteriormente vieram “Novena” e “Gira Girou”, ao lado do parceiro Márcio Borges. Cinco anos depois, Milton entrou nos estúdios da (hoje extinta) gravadora Codil para registrar seu disco de estreia.
“Travessia” (1967) é um dos maiores clássicos da sua discografia, com arranjos de Eumir Deodato. No ano seguinte, o maestro esteve com Milton em New Jersey para gravar “Courage” (1968) pelo selo CTI juntamente com um nomes que mudaria a história do jazz nos anos seguintes, Herbie Hancock.
A arte de reunir colaboradores de alta patente fez com que o cantor e compositor tivesse ao seu lado os parceiros mais celebrados que um artista poderia ter: instrumentistas como Wagner Tiso e Nelson Angelo (piano), Toninho Horta (bateria), Luiz Alves e Novelli (baixo), o violonista Tavinho Moura; os cantores, compositores e instrumentistas Lô Borges e Beto Guedes, os letristas Fernando Brant, Márcio Borges e Ronaldo Bastos.
Musicalmente, traziam uma formação tão rica e com harmonias tão intrincadas que até hoje são motivo de admiração entre os músicos do jazz internacional. As letras traziam um tanto de política, disfarçada por metáforas. “Morro Velho”, de autoria apenas de Milton, é uma dos relatos mais dolorosos a respeito do racismo, enquanto “Tudo o que Você Podia Ser” (de Lô e Márcio Borges), “Nada Será como Antes” (de Milton e Ronaldo Bastos) e “Saudades dos Aviões da Panair”(de Milton e Fernando Brant) eram metáforas sobre a situação do país e seus desaparecidos.
“Milton foi o mais genial na área daquele cancioneiro mineiro. Tem universalidade sua criação toda embora tenha começado como um grupo de boêmios de esquina”, decreta o maestro Julio Medaglia, colaborador do Tropicalismo.

A produção de Milton Nascimento nos anos 1960 e 1970 é irretocável, a dos anos 1980 traz algumas maravilhas (“Sentinela” e “Caçador de Mim”, lançados respectivamente em 1980 e 1981 são lindos). Nos últimos tempos, embora não tenha sido tão ativo em sua composição, tem pelo menos dois pequenos clássicos: “Pietá”, de 2002, e “Milton +Speranza”, que fez em parceria com a baixista americana Esperanza Spalding.
Hoje dou pouca bola à discografia do Iron Maiden, mas a de Milton Nascimento é presença garantida em casa. E se ainda ele não consegue explicar o porquê da beleza de sua obra, há compositores como Gutemberg Guarabyra que se esforçam para explicá-la: “Há três maneiras de se enxergar a obra de Milton Nascimento. Uma pela riqueza harmônica que surpreende por potencializar o caráter majestoso dos acordes sempre potencialmente sinfônicos, o que resulta em arranjos que com imensa facilidade podem soar grandiosos mesmo que o arranjador não seja nenhum John Williams. Segundo, as melodias que invariavelmente transitam perfeitamente entre os acordes, cortando-os feito feixes de luz, ora intensos, ora suaves, mas invariavelmente intensos, perfurando sem piedade as emoções. A terceira acontece quando a composição dele se junta à sua voz formando um conjunto só. Aí a música de Milton se torna completamente, totalmente, absurdamente inigualável.” Ave, Milton.
Abaixo, playlist com alguma das canções fundamentais para conhecer a obra de Milton Nascimento