Você já ouviu falar no fenômeno Boy’s Love?
Consumo do gênero cresceu 188% no Brasil em 2022
Principal produto audiovisual de exportação da cultura da Tailândia, as séries Boy’s Love – chamadas carinhosamente de BLs – trazem um casal homoafetivo como protagonista. No Brasil, o consumo do gênero no Rakuten Viki, plataforma de streaming focada para produções asiáticas, cresceu 188% em 2022.
A origem dos BLs vem dos mangás japoneses, do gênero Yaoi, dos anos 1970. As obras literárias sobre casais homoafetivos na Tailândia, baseada nas produções de fãs, chamaram a atenção das empresas pelo sucesso financeiro.
As adaptações para a TV ganharam espaço e, em 2014, a série “Love Sick: The Series” abriu as portas para novo gênero no mercado audiovisual tailandês. A popularidade foi imediata.
Outro ponto de virada aconteceu entre 2020 e 2021, quando a popularidade dos BLs, especialmente com a série “Kinnporsche” alcançou as Américas, Austrália e Europa. A explosão fez com que os BLs conquistassem outros campos e ganhassem uma fama global significativa.
Em entrevista para a Billboard Brasil, Anderson Lopes, professor e Vice-Diretor do Center of Latin American Studies da Chulalongkorn University, em Bangkok, Tailândia, diz que o sucesso dos BLs na América Latina se dá por vários fatores.
O primeiro é base narrativa melodramática em comum entre as produções audiovisuais de qualquer país, mas que gera conexão com o público. “São marcações visíveis entre o bem e o mal, o vilão e o mocinho, o herói que luta para vencer os obstáculos para alcançar o amado.”
O segundo é a competência midiática dos grupos de fãs, principalmente dos fansubs, grupos dedicados na tradução rápida e fiel dos episódios das séries em várias línguas. O engajamento do público faz com que haja discussões sobre os temas abordados nos BLs, além das questões culturais do país, e estendendo o universo do consumo.
Em “KinnPorsche,” seguimos a história de Porsche (Apo Nattawin), que se esforça ao máximo para sustentar o irmão mais novo. Por outro lado, Kinn (Mile Phakphum) é um jovem líder da principal família da máfia local. Seus caminhos se cruzam quando Porsche ajuda Kinn a escapar de um grupo rival do crime organizado.
Jeff Satur, estrela tailandesa que fez parte do elenco, não categoriza a série como sendo BL. “[A identidade de] gênero não pode definir o tipo de filme ou série. O que a fez ir tão longe é a química entre os atores, a história e a produção”, diz. No país do cantor, os BLs são chamados de Y Series, se referindo à palavra japonesa Yaoi.
Influência do fandom
No Brasil, o portal BoysLove Hub tem mais de 100 mil seguidores nas redes sociais. Maria Barbosa, influencer e uma das administradoras, ressalta a diversidade das temáticas das produções.
“A gente só via séries e filmes [LGBTQIA+] sempre tristes, com tragédia, sobre uma vivência de dor. Gay só sofre, não sabe ser feliz. De repente, você encontrar produções com temáticas leves, clichês adolescentes, essas relações acontecendo em outros espaços. Foi o que me fez continuar assistindo os BLs”, afirma.
Com atualizações em tempo real do universo BL, o grupo de 9 administradores se dedica em divulgar as novidades das produções. “Nós éramos fãs comuns. Só que chegou um momento que vimos que existia uma demanda, que precisávamos de um lugar que centralizasse as informações. A gente não encontrava isso e pensamos: ‘Por que não fazer?'”, acrescenta Kaio Machado, co-fundador do portal.
Outro fator de sucesso a resposta afetiva do público, que carece de um segmento de produção narrativa queer no Brasil. Segundo Anderson, isso cria esperança naqueles que desejam consumir narrativas dessas relações.
Para Karen Paek, vice-presidente de Marketing do Rakuten Viki, a diversidade é uma base fundamental da plataforma de streaming. O Brasil é o país com o terceiro maior público da marca e o público é atraído por histórias que se relacionam com a vida cotidiana.
“A diversidade é e sempre será uma base fundamental para nós e garantiremos que o conteúdo asiático culturalmente rico que apresentamos ao nosso público em todo o mundo celebre isso, incluindo BLs e a comunidade LGBTQIA+”.
O pesquisar também cita as práticas de shipping de um casal, ou seja, uma torcida para continuarem juntos, e a influência das empresas na alimentação do romance.
“Se o ator performa um casal na narrativa, o público quer isso fora também. Também há prática do fansub, que é de fã para fã. E também temos que falar do fan service. A empresa entende que os fãs estão engajados, e ela produz e alimenta o desejo dos fãs de seguir os personagens e atores dentro e fora das telas.”
Para prestar o serviço aos fãs, as empresas tailandesas testam a química entre casais antes mesmo das gravações da produção. Anderson traz um ponto negativo de tal prática:
“Os atores sofrem muito com perseguição dos fãs. O limite é tênue entre realidade e ficção. Isso está borrado na cabeça dos fãs, mas não por pura e completa culpa deles. Há uma alimentação dessa esperança que isso seja performado fora da tela feito pela empresa que produz a narrativa.”
Paraíso queer
Apesar do sucesso de uma narrativa homoafetiva na Tailândia, o país enfrenta questões delicadas com a população LGBTQIA+. Visto como paraíso para o turismo queer, o país tem um traço cultural importante para se levar em consideração: a busca pela harmonia social.
“Existe uma expressão que se chama เกรงใจ [pronúncia: Kreng jai], que é não produzir confronto, evitar o conflito ao máximo. Isso vai estar em todas as relações, de trabalho, familiares, e também de afeto. Para essa sociedade é melhor não se discutir algumas questões, ainda que elas existam, para que não se altere essa harmonia”, explica Anderson.
“Para o turista é um paraíso. Você está lá momentaneamente, você vivencia as benesses. É uma sociedade que evita conflito a todo tempo. Se alguma pessoa não concorde com sua orientação ou identidade de gênero, ela nunca vai te falar, ela vai evitar. Se você mora aqui, cidadão ou residente, aí a situação é mais complexa.”
A Tailândia não permite adoção por casais do mesmo gênero, assim como casamento e doação de sangue.
“Se você comparar o contexto tailandês com Cingapura, Brunei, Indonésia, não dá para falar que a Tailândia é conservadora. Tudo depende da base de referência”, diz o pesquisador.