O Encontro das Sanfonas, cuja última edição foi realizada em João Pessoa, é uma celebração do mais nordestino dos instrumentos musicais. Como referências da cena, Dorgival Dantas, Waldonys e Flávio José se uniram neste projeto especial para levar ainda mais longe o som do acordeon.
Do forró tradicional aos hits modernos, a sanfona reconquistou espaço de destaque na música nacional, embalada por uma nova geração de artistas e pelo entusiasmo do público jovem. O que antes era restrito a festividades regionais agora domina rankings de streaming, clipes virais e colaborações com estrelas do pop. O fole voltou a tocar alto em todo o país.
“Eu vibro quando vejo a garotada tocando acordeon e cantando. É muito importante que venham pessoas nos seguindo, dando continuidade à obra de Luiz Gonzaga” – diz Flávio José, 74, veterano do trio. – “Até porque a gente não vai ficar aqui para sempre. No dia que a gente se for, precisamos de alguém para lutar essa batalha”.
A fala de Flávio José reflete com autoridade a postura de quem dedicou a vida inteira ao forró. Em mais de 50 anos de carreira, o sanfoneiro paraibano emplacou clássicos que hoje são hinos das festas juninas, casos de “Tareco & Mariola” e “Caboclo Sonhador”. Ao longo dessa trajetória, Flávio testemunhou os altos e baixos da sanfona no cenário musical.
Para ele, manter vivo o acordeon sempre foi uma missão cultural: missão que agora também é abraçada pelos novos talentos. Dorgival Dantas já foi um desses prodígios incentivados por Flávio. Ele contou que o sanfoneiro paraibano foi um dos primeiros a dar oportunidade para suas canções. O Poeta disse como se deu o primeiro encontro entre eles. Ele foi levado ao apartamento do artista após impressionar um de seus produtores.
“Flávio pediu para eu cantar umas músicas, que eu havia mandado por correio e ele nunca tinha respondido. Quando terminava, ele dizia: ‘cante de novo’. Eu perguntei: ‘o senhor está duvidando que essas músicas são minhas?’. Então ele respondeu: ‘Não rapaz, você não colocou nome, telefone e endereço na carta. Eu queria gravar, mas não sabia de quem era’. Ele me fez um adiantamento de R$ 5 mil, na época o dólar valia R$ 0,92. Eu nunca imaginei que fosse ganhar tanto dinheiro. Com o valor, comprei uma sanfona igual à dele”.
TRADIÇÃO NORDESTINA EM EVIDÊNCIA
Duas décadas mais jovens que Flávio, Dorgival Dantas e Waldonys representam a ponte entre tradição e novidade na cena sanfoneira. Dorgival compôs diversos sucessos românticos que extrapolaram o circuito regional – incluindo “Você Não Vale Nada”, hit que integrou trilha de novela e tocou no país inteiro. Já o cearense Waldonys teve uma iniciação privilegiada: ainda adolescente, recebeu a bênção de Luiz Gonzaga e Dominguinhos no no começo da carreira. E ele pretende passar essa sabedoria adiante para os novos artistas.
Também conhecida como acordeon ou fole, a sanfona sempre ocupou um lugar especial na música brasileira. Foi através de Luiz Gonzaga, Dominguinhos e tantos mestres que o acordeon se tornou a alma do forró, embalando festas juninas e celebrações populares por gerações.
Nos anos 1980 e 1990, porém, o instrumento perdeu espaço no cenário pop nacional diante da influência de ritmos estrangeiros e da eletrônica. Bandas de forró passaram a usar mais teclados e guitarras, e a sanfona ficou associada sobretudo à tradição regional.
Mesmo assim, ela nunca deixou de ser venerada: continuou presente nas raízes sertanejas, no baião, no xote e em toda festa junina no Nordeste. Afinal, a sanfona é quase como um órgão vital para os seus adeptos.
“Para um sanfoneiro, a sanfona é a extensão do corpo”, filosofa Waldonys. “É um instrumento de muito sentimento. Você toca ela colada no coração.”
FORRÓ E SANFONA NO TOPO DAS PARADAS
Os últimos anos assistiram a uma virada histórica: o forró e seus subgêneros, puxados pela sanfona, explodiram nas paradas de sucesso de todo o Brasil. Por trás dessa retomada estão artistas que unem carisma, inovação e respeito à tradição. Um deles é Mestrinho, herdeiro de uma família de sanfoneiros sergipanos, construiu carreira sólida no forró de raiz. Hoje colhe os frutos de um inédito estrelato pop. Em 2024, ele uniu forças com João Gomes e o cantor Jota.pê no projeto “Dominguinho”, álbum colaborativo homenageando o legado de Dominguinhos.
Tarcísio do Acordeon também é um dos exemplos desses novos expoentes. O cearense já alcançou, por exemplo, o primeiro lugar no Spotify Brasil com o hit “Meia Noite (Você Tem Meu WhatsApp)”, ultrapassando nomes do funk e sertanejo nas plataformas. Ele chegou a colocar cinco músicas simultaneamente no Top 200 do Spotify nacional, um desempenho inédito para um forrozeiro. Mesmo estourado, o sanfoneiro sempre faz questão de reverenciar seus mestres, como Dorgival Dantas:
“Minha relação com Dorgival é muito boa. A gente que é fã a vida toda, tem aquela ansiedade na hora de conhecer um ídolo – revelou Tarcísio do Acordeon, quando foi convidado a participar do projeto ‘Raízes’, do sanfoneiro potiguar. – E ele sempre me recebeu muito bem, me aconselhou. É um cara que tem a cabeça muito aberta a novos artistas”.
Multi-instrumentista paraibana, Lucy Alves ganhou projeção nacional ao participar do The Voice Brasil e atuar em novelas globais. Lucy leva a sanfona para além do forró: em seus shows e aparições na mídia, ela mescla ritmos e chega a adaptar hits do pop internacional ao instrumento. Sua carreira eclética, transitando entre o forró tradicional, o pop e até a atuação em TV, exemplifica como o acordeon conquistou espaço na cultura pop brasileira atual, inclusive com forte presença feminina. Convidada especial do Encontro das Sanfonas em João Pessoa, ela refletiu sobre as mulheres sanfoneiras, e garante que a juventude está desafiando o conceito de que o instrumento, que chega a pesar mais de 10 kg, é só para homens.
“Posso falar que hoje já somos muitas, se comparado ao tempo em que comecei”, diz Lucy. “Não via muitas referências femininas. Quando eu era criança, lembro apenas de uma sanfoneira: Angélica Lacerda, que fazia parte de um grupo só de mulheres chamado As Bastianas. Acho que, nesse sentido, minha aparição na TV foi muito importante para que mais meninas vejam que é possível.”
Nas festas de São João dos últimos anos, por exemplo, foi comum ver artistas pop e sertanejos convidando sanfoneiros ao palco, ou incorporando trechos de forró em seus shows. Esse intercâmbio garantiu que o som inconfundível da sanfona se tornasse familiar e querido também para as novas gerações conectadas. Sem sanfona, não dá! O velho refrão de Luiz Gonzaga nunca fez tanto sentido: em 2025, o acordeon reafirma seu lugar na música brasileira, unindo a tradição ao pop como se nunca tivesse saído de cena.