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O Jazz que o Brasil sente, mas nem sempre ouve
Luedji Luna se apresentando no Sesc Jazz (Sérgio Fernandes)

O Jazz que o Brasil sente, mas nem sempre ouve

jazz nunca foi um visitante no Brasil. Ele chegou como quem reconhece um parente distante, com improviso, mistura, escuta, um som que transforma o erro em invenção. Há algo de profundamente brasileiro nesse gesto: o improviso do samba, o balanço da bossa nova, o risco do frevo, a fluidez do choro. Antes mesmo de sabermos o nome disso, o jazz já estava aqui, habitando o jeito como o país cria som e se reinventa musicalmente.

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Porém, quando se convida “vamos ver um show de jazz“, ainda paira no ar o receio de que seja chato, sisudo, distante. Isto é reflexo de uma leitura, felizmente cada vez mais diluída, que associava o gênero à sofisticação de uma elite, alheia aos seus fundamentos ancestrais e de afirmação política.

Talvez por isso o jazz, mais do que um gênero, seja um estado de espírito; uma prática de escuta, de afeto e de reinvenção. É por essa perspectiva que ele se revela uma tecnologia de resistência cultural: uma vivência afrodiaspórica que confronta a cultura colonialista. Enquanto a tradição europeia privilegiava a escrita — mais planejada e menos espontânea —, o jazz se desenvolveu nas Américas como conexão coletiva, improvisação e exploração sonora, um gesto de insubmissão e experimentação.

Sesc Jazz: um território de encontros e reflexões

É nesse sentido que o Sesc Jazz se afirma, menos como festival e mais como território de encontro e ampliação desse entendimento. A cada edição, a curadoria – formada este ano por Flávia Rabaça, Giovana Suzin, Itamar Dantas, Pérola Braz, Silvio Luiz da Silva, Silas Storion e Rosana Rocha e Silva – se propõe a ampliar esse mapa sonoro, cruzando a pulsação afro-brasileira com o universo expandido do Atlântico Negro.

Na edição mais recente, que ocorreu entre outubro e novembro nas unidades do Sesc São Paulo, a mostra reafirmou o gênero jazzístíco como uma música de invenção coletiva e diálogo entre tradições, trazendo para o palco (e para atividades formativas) expressões que emergiram da diáspora africana em diversas regiões.

A teia de conexões ficou clara no elenco:

O encontro histórico de Dom Salvador e Amaro Freitas que entrelaçou o samba-jazz e a improvisação contemporânea, afirmando a pulsação afro-brasileira como base de invenção.

Luedji Luna e a reverência a Alaíde Costa, unindo a estética do jazz à tradição vocal brasileira.

Luedji Luna e Alaíde Costa no Sesc Jazz (Sérgio Fernandes)
Luedji Luna e Alaíde Costa no Sesc Jazz (Sérgio Fernandes)

As múltiplas manifestações latino-americanas que expandiram o espectro rítmico, como o toque ancestral do Aguidavi do Jêje, a fusão de funk e invenção de Moacir Santos e John Coltrane (por coletivos paulistas), e as vozes afro-latinas como a da cubana Aymée Nuviola.

A liberdade da África Ocidental presente no transe das guitarras tuaregues do Etran de L’Air (Níger) e o frafra gospel de Alogte Oho and His Sounds of Joy (Gana), demonstrando que as linhas melódicas e rítmicas do jazz têm raízes profundas no continente-mãe.

Ao promover esses diálogos, o Sesc Jazz não apenas celebra uma , mas o revela como um mosaico de experiências ancestrais construídas ao longo de séculos, que celebram a troca, a invenção e a improvisação como prática política, coletiva. Um exercício de escuta e descolonização: desvendando o jazz para além de uma vitrine de sofisticação e o reencontrando em sua essência de invenção e liberdade.

O festival acontece todos os anos e é um convite para que o público reconheça, nesse improviso global, o balanço que já sente no samba, no frevo, no choro. Essa música que nos atravessa, de um palco em São Paulo ao deserto tuaregue, é a prova de que o jazz, no Brasil e no mundo, não é apenas um gênero musical. É uma linguagem inesgotável para se estar no mundo, resistir e recriar o futuro a cada nota.


Itamar Dantas é programador de música no Sesc Pompeia e membro da curadoria do Sesc Jazz — ao lado de Giovana Suzin, Pérola Braz, Rosana Rocha, Flávia Rabaça e Silas Storion.

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