Meu Brasil Brasileiro (em Portugal)
História de amor entre o fado e a MPB ganha novos capítulos com Carminho

Em duas décadas de carreira, Carminho gravou com os principais artistas da MPB. Não existe um disco sequer da cantora que não traga a participação de nomes de alta patente (Chico Buarque, Nana Caymmi, Maria Bethânia e Milton Nascimento, por exemplo), intérpretes e autores que deram um novo sopro à nossa música na virada dos anos 1980 para os 1990 (Marisa Monte e Arnaldo Antunes, por exemplo) e talentos da composição surgidos no início do século – Marcelo Camelo, seu parceiro no disco “Portuguesa”, de 2023.
Quando se conecta com o que existe de melhor na nossa música, Carminho atualiza uma tradição iniciada no século XIX. Foi quando a família real portuguesa veio ao Brasil – então colônia de Portugal – para escapar das tropas de Napoleão Bonaparte (um episódio que você certamente lembra das aulas de história). À época, o monarca Dom João VI e sua corte finalmente retornaram a Lisboa em 1821, levando na bagagem, entre outras riquezas, a modinha. Este gênero musical mais tarde resultaria num dos elementos musicais que ajudaram a influenciar o fado, a música-símbolo de Portugal.
Leia também: Carminho, a restauradora do fado que canta Portugal com alma universal
As relações entre os dois países permaneceram ao longo dos séculos e influenciaram até os principais nomes de sua música. Chiquinha Gonzaga (1847-1935), um dos maiores nomes do nosso cancioneiro em todos os tempos, passou temporadas em Portugal e escreveu peças para os teatros de Lisboa – uma dessas maravilhas foi “Romance da Princesa”, que ganhou uma interpretação lindíssima de Roberta Miranda.
A consolidação da indústria fonográfica fez com que a ponte aérea Brasil-Portugal se intensificasse ainda mais. Amália Rodrigues (1920-1999), a maior intérprete portuguesa em todos os tempos, fez em 1968 um show ao lado do poeta brasileiro Vinicius de Moraes. O registro do espetáculo, lançado em 1970 e repleto de poemas declamados em meio às canções, traz “Saudades do Brasil em Portugal”, uma parceria de Vinicius com Alberto de Homem Cristo.
A queda da ditadura salazarista em 1974 – e que Chico Buarque lembrou brilhantemente em “Tanto Mar”, aquela que pede “um cheirinho de alecrim”, uma alusão à necessidade do Brasil também se livrar da ditadura – fez com que os portões de Portugal se abrissem ainda mais para a nossa música. Que chegou através de turnês de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, ao arsenal de músicas despejadas através das novelas e ao consumo desenfreado de artistas populares como Roberto Carlos.
O concerto de encerramento da Festa do Avante! (um festival anual do Partido Comunista Português) de 1980, no Alto da Ajuda, quatro dias depois da morte de Vinícius de Moraes, marcou definitivamente a presença da música brasileira em Portugal. Chico Buarque, Edu Lobo, MPB4 e Simone subiram ao palco para fazer uma apresentação memorável, que abriu de vez as portas do público lusitano para os brasileiros.
Num ótimo artigo publicado na revista virtual “Público”, a antropóloga Amanda Fernandes Guerreiro apontou outro fator importante para o crescimento da música brasileira em Portugal: as ondas migratórias tupiniquins, ocorridas nos anos 1990 e 2000. Houve então um aumento de bares e programas dedicados à nossa música e um crescimento do número de intérpretes e instrumentistas vindos do Brasil. Foi através desses pioneiros que gêneros mais populares como axé music, música sertaneja e funk passaram a tocar naquele país.
“As músicas sertanejas fazem muito sucesso aqui também. Não só pelos portugueses, mas também pelos próprios brasileiros que vivem aqui”, aponta o musicólogo e historiador Ivan Lima. Ele ainda ressalta a dimensão estrondosa que o showbiz brasileiro tem em seu país. “Chico Buarque é o maior ídolo da música portuguesa. Eles só não admitem isso porque Chico nasceu no Brasil, né? O público jovem consome também muitos dos artistas daí. Emicida, por exemplo.” E há muito mais exemplos. Fafá de Belém e Alceu Valença possuem casa em Portugal e volta e meia fazem temporadas no país, Adriana Calcanhotto dá aulas de composição na Universidade de Coimbra.
Lima, no entanto, pontua que sente necessidade de ter mais artistas portugueses no Brasil. “É uma relação muito desproporcional, são raros os astros daqui tocarem no Brasil”, lamenta. Cá entre nós, uma situação que o atual disco de Carminho tem tudo para mudar.