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MC Negão Original: o ex-criminoso e ex-pastor que mudou a cara do funk de SP

MC Negão Original: o ex-criminoso e ex-pastor que mudou a cara do funk de SP

Cantor é destaque no Billboard Brasil Hot 100

Avatar de Guilherme Lucio da Rocha
negao original

A série “Sintonia” é a maior franquia brasileira da plataforma Netflix. Ela conta a história de três personagens: Nando (Christian Malheiros), um jovem envolvido com o crime; Doni (Jottapê), que tenta o sonho de ser funkeiro; e Rita (Bruna Mascarenhas), uma garota religiosa, ligada à igreja evangélica. Com sua quinta e última temporada lançada em fevereiro de 2025, a trama é um retrato de boa parte dos conflitos existentes pelas periferias de São Paulo (local onde a série se ambienta) e do Brasil. Se com esses três elementos divididos em três personagens, “Sintonia” conseguiu ser sucesso de público, imagina reunir a tríade em uma única pessoa?

É o caso de João Vitor Ribeiro Marcelino Guido, de 23 anos. Antes pastor, traficante e estelionatário, o hoje funkeiro, que tem como nome artístico MC Negão Original, é autor de diversos sucessos que ecoam para além das favelas
de São Paulo – caso de “Medley de Igaratá”, que figura na lista das músicas mais ouvidas do país, segundo o Billboard Brasil Hot 100. O homem negro, de cerca de 1,80m, com a voz grave, gosta de deixar claro que seu passado o moldou para ser não só artista que é hoje, mas um ser humano melhor.

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“Para falar a verdade, não sei bem o que seria de mim. Eu era uma pessoa ruim, não pensava muito em prejudicar alguém. Não digo que a igreja me curou, porque Deus está em todos os lugares. O que me salvou foi Deus, que me honrou e fez com que minhas atitudes forjassem um homem melhor”, disse o cantor, em entrevista para Billboard Brasil.

A história de João Victor é uma espécie de roteiro de filme nacional bem clichê: do extremo leste de São Paulo e
filho de pais separados, na infância ele gostava de desenhar e escrever o que se tornaram suas primeiras composições.
Quando estava com o pai, Pedro Guido, frequentava a igreja e gostava do ambiente religioso. Foi no início da adolescência que ele começou a ganhar novas responsabilidades no templo evangélico que frequentava, inclusive pregando em outros estados. Concomitantemente, dava os seus primeiros passos “no mundo”.

O tráfico de drogas era a maneira que o jovem encontrava para conseguir dinheiro e ajudar sua mãe em casa. Porém, assim que a família percebeu que ele estava se perdendo do caminho da igreja, seus pais tomaram a decisão de interná-lo em uma clínica de acolhimento. Durante seis meses, aos 14 anos, ficou isolado do mundo.

“Foi ali que entendi o que era responsabilidade e também tive a certeza que Deus preparava algo grande para minha vida”.

Foi interessante ouvir o hoje funkeiro falar daquele momento de vida como uma espécie de provação necessária. Ainda um adolescente, ele já tinha passado por um papel destaque em uma igreja e, segundo o próprio, tinha o respeito dos seus pares no tráfico. Ao fazer uma análise sobre esse período de vida, Vitor mantém o tom de voz baixo, variando
entre a emoção e a nostalgia. É como se ele tivesse a certeza de que o sofrimento era necessário.

Depois da clínica, a igreja passou a ocupar um papel secundário na sua vida – mas a religiosidade se manteve forte. Já o crime e, principalmente, a música ganharam um protagonismo simbiótico.

‘Uh, tá Raul, hein, bigode!’

Certa vez, João e um amigo decidiram gastar parte do dinheiro que ganhavam com golpes on-line. Ele brinca que o seu novo ramo no crime estava dando tão certo que chegou a ser reconhecido na rua por seus “feitos cibernéticos”. Os dois amigos foram até uma casa noturna e conheceram uma jovem, que foi selecionada pelo estabelecimento para abrilhantar
o ambiente. Tal trabalhadora é conhecida popularmente como presença VIP. Mesmo com o sucesso no estelionato, o dinheiro era finito. Mas a vontade de impressionar a moça não tinha limites. Madrugada adentro, João e o amigo gastaram o que tinham – e o que não tinham – para ter a atenção da presença VIP. Foram horas com o trio bebendo e
“luxando”. Pouco antes de amanhecer, João notou que a profissional estava saindo do estabelecimento e seu plano ia
por água abaixo.

Ao chegar em casa, o jovem iludido – e com raiva – pegou seu celular e decidiu gravar um vídeo expondo o que aconteceu. Engolindo o orgulho, ele iniciou a gravação dando um trago no baseado e, com a fumaça ainda no pulmão, deixando sua voz ainda mais grave e rouca, soltou a frase “uh, tá Raul, hein, bigode!”, antes de explicar que se sentia enganado pela profissional, que usufruiu das benesses de acompanhar a dupla de estelionatários, mas não caiu na armadilha dos amigos. Raul é uma gíria para o especialista em golpes bancários, praticante do estelionato.
Já bigode é utilizado, via de regra, para classificar pessoas de alta hierarquia. No dia seguinte, João Vitor abriu seu Instagram e viu que recebeu vários elogios ao vídeo e algumas críticas – pois o jovem postou um segundo vídeo
sem a frase de impacto.

“Ali, percebi que tinha criado um personagem. As pessoas começaram a usar a gíria e me mandar vídeos. Na minha visão,
quem vive na periferia não tinha muito onde se ver na internet, não tinha um nicho de influenciador, de gente gravando vídeo falando gírias e detalhes que só quem é de periferia entende.”

A era de João como golpista não durou muito, mas sua rápida experiência no mundo dos “Raul’s” fez com que as histórias contadas pelo influenciador ganhassem retoques tão reais que até profissionais da área foram reclamar. Afinal, os detalhes atrapalhavam a discrição e desconhecimento necessários para que os golpes fossem efetivos.

Nesse ínterim, adotou o nome artístico de MC Negão Original (reafirmando sua raça com sua personalidade única) e tentou investir na música, aproveitando as composições guardadas e o crescimento do seu personagem na internet. Ele ainda praticava um delito aqui, outro ali, quando teve a ideia de fazer uma conta rápida: com o crime, ele faturava
X. Já com a consequência dos seus vídeos (publicidades, shows e presenças VIPs) ele faturava X + 2. Sair de vez do crime passou a ser uma realidade possível. “Isso faz uns dois anos e pouco. Nem tinha música estourada e o pessoal me chamava para baile porque o meu nome no flyer já era certeza de casa lotada. Eu trabalhava como uma mistura de influenciador com MC. Quem me incentivou a gravar mesmo foi o MC GP. Uma vez, ele estava na praia, gravou um vídeo com meu bordão e me marcou. Começamos a trocar ideia, ele me chamou para uma sessão de estúdio e daí vi que tinha um espaço mesmo no funk.”

Dois anos depois iniciar sua carreira de funkeiro, MC Negão Original já fez mais de 40 shows em único mês. Segundo sua equipe informou para Billboard Brasil, o cachê do artista para shows em São Paulo custa R$ 30 mil. Uma conta básica aponta que, no mês com 40 apresentações, seu faturamento foi de R$ 1,2 milhão.

A nova nata de São Paulo

O funk de São Paulo nasceu na Baixada Santista, no início dos anos 1990. Após um período de nicho, o gênero cresceu com uma identidade própria da vertente proibidão, que se resume em letras que retratam o cotidiano das periferias e do mundo do crime com uma visão sem filtros. Se diferenciando da sua casa natal, o Rio de Janeiro, MCs como Renatinho e Alemão, Danilo e Fabinho e Neguinho do Kaxeta se tornaram referências no início do século e ganharam fama com o proibidão.

À época, as composições eram mais explícitas, citavam nominalmente o Primeiro Comando da Capital (PCC), armas, drogas e até mesmo descreviam crimes reais. Em defesa própria, os MCs alegam o direito à liberdade de expressão e comentam que, se roteiristas de filmes têm o espaço para desenvolverem suas histórias envolvendo a criminalidade cotidiana
como acharem melhor, por que funkeiros não podem?

Anos depois, o funk subiu a serra, estabeleceu-se em São Paulo e nomes como MC Kelvinho e MC Kapela assumiram uma
espécie de nova cara para o proibidão. Em meados dos anos 2010, com um discurso mais suave, eles privilegiavam histórias envolvendo golpes bancários, estelionatos e os mais variados crimes que se enquadrem no artigo 171 do código penal, que diz: Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.

MC Negão Original aperfeiçoou o “neoproibidão” paulistano. Um pouco mais ousado nas letras, essa nova vertente acrescenta um hedonismo, principalmente com relação às mulheres – principalmente aquelas que atuam com prostituição. João Vitor conquistou um novo público que deseja, de forma lícita ou não, viver a vida retratada nas músicas do funkeiro. Nesse contexto, há um debate recente, puxado pela vereadora paulistana Amanda Vettorazzo (União Brasil) ao apresentar o PL, apelidado de “lei anti-Oruam”, na Câmara Municipal de São Paulo. O texto prevê proibir que equipamentos públicos contratem shows e eventos de artistas “que façam apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas”.

A proposta tem eco em outras casas legislativas do país, mas é fortemente criticada por personalidades que vivem o outro lado dessa história e interpretam a movimentação como uma forma de censura e ameaça à liberdade de expressão artística, sobretudo porque ignora, de certa forma, a realidade vivida nas favelas e periferias do país. MC Negão
Original não entra fundo nessa questão. Mas não é o caso de alguém sem posição.

“Muita gente fez antes o que eu faço hoje. Não tem nem segredo, para mim, essa questão de crítica. Sou funkeiro,
preto. Vão reclamar até se eu cantar música infantil, imagina putaria? Dentro do funk mesmo teve gente que virou a cara, principalmente por eu cantar putaria mesmo. Infelizmente, é parte da profissão”. O próximo passo de João Vitor é seguir carreira de ator. Ele fez uma “ponta” na série “DNA do Crime”, da Netflix, mas ao ser perguntado qual seria seu sonho, diz: “ser uma estrela”.

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