Como Jimmy Cliff conecta a cultura jamaicana com o mundo
Revisite a trajetória do embaixador do reggae
Não é fácil imaginar onde o reggae estaria sem a participação de James Ezekiel Chambers, o Jimmy Cliff, vítima de pneumonia fatal aos 81 anos em 24 de novembro. Com 65 anos de carreira, quase 30 álbuns e dezenas de sucessos globais, o “Bongo Man” se revelou mais do que um artista de talento, mas também um entusiasmado embaixador, alguém que passou a vida conectando a música e a cultura jamaicanas com a de outros países, num leva e traz incessante.
Foi pioneiro na América do Sul, Central e na África, abriu portas pra outros artistas, ajudou um monte de gente pelo caminho. Num mundo em que artistas criados por IA começam a ganhar espaço, caras como ele vão fazer falta.
Chegou o furacão
Jimmy Cliff nasceu em 1944 na área de Montego Bay, em Adelphi Land. Família simples, pai alfaiate e lavrador, a mãe com as asas nele e no irmão, os cânticos da igreja como aprendizado e, então, o roteiro comum da fuga pra capital. O propósito em Kingston era estudar eletrônica, mas o jovem de 16 anos logo foi absorvido pela eletricidade das periferias, onde o som dos tambores rastafári se misturava ao dos sound systems, máquinas de som populares em festas de muita rumba, merengue, calipso e rhythm’n’blues.
Decidido a entrar na música, bateu na Beverley’s, uma lojinha de sorvetes, cosméticos e discos comandada por três irmãos jamaicanos de origem chinesa, disse que tinha uma balada chamada “Dearest Beverley” pra que eles mandassem gravar. “Não gravamos discos”, ouviu de cara, mas o rapaz a cantou mesmo assim. Dois dos irmãos riram. O terceiro, Leslie Kong, percebeu estar diante de um talento e de uma oportunidade de negócio. Mandou gravar. A bolachinha trazia a música com o nome da loja e, do outro lado, “Hurricane Hattie”, que se tornou sucesso na parada jamaicana de 1962. E foi assim que Jimmy Cliff projetou seu nome na cena local e deu a Beverley’s o impulso pra se tornar um dos selos mais importantes da ilha na profusa década de 1960.
Já enturmado com os bambas, Jimmy estava na trupe que representou a Jamaica na World Fair em Nova York, em 1964, ao lado de Byron Lee and The Dragonaires, Prince Buster, Monty Morris e Lloyd Willis, num esforço pra promover o ska, a “nova sensação dançante” que vinha do Caribe. No ano seguinte, se mandou pra Londres com incentivo de Chris Blackwell, da Island Records. O mais provável seria pensar em Jimmy como um nome emergente do ska, certo? Só que não. Em vez de seguir na nova onda, se engajou como crooner em bandas de soul, zanzando de van entre a Inglaterra e a França, vez por outra abrindo shows de nomes mais famosos, como The Who e Spencer Davis Group, e anotando presenças ilustres na plateia, como Jimi Hendrix, caras dos Stones, Animals, The Who e até dos Beatles. Em 1967, quando em Kingston o rock steady sucedia o ska, a gravadora em Londres lançou Hard Road to Travel, primeiro álbum de Jimmy Cliff, com canções autorais e covers de soul e rhythm’n’blues que só vagamente sugeriam a origem jamaicana do artista. E se isso parece meio maluco, te prepara para o próximo parágrafo.
Jamaicano doido
Em 1968, quando ainda faltavam dois anos pra música jamaicana cristalizar ingredientes e irromper como gênero musical, Jimmy Cliff deixou os planos de soul singer na Inglaterra e veio representar a Jamaica no 3º Festival Internacional da Canção, no Maracanãzinho, transmitido pela TV Rio e pela TV Globo. Era pra ser dez dias, acabou virando dois meses. Despachado, fez amigos no meio artístico, cantou no programa do Chacrinha e até gravou um disco, Jimmy Cliff in Brazil, produzido por Nonato Buzar, o pai da pilantragem, estilo consagrado por Wilson Simonal. (Curiosidade metafísica: Buzar vinha do Maranhão, que mais tarde adotaria o reggae como se fosse seu.) A capa traz o jamaicano dançando e o Pão de Açúcar ao fundo e, lá dentro, ele cantando “Serenou” em português, versões em inglês para “Vesti Azul” (sucesso na voz de Simonal) e para “Andança” (que lançou Beth Carvalho), além de “Waterfall” (a música do festival) e cinco faixas do pioneiro álbum da Island. Resumindo, um samba do jamaicano doido que hoje vale uma nota no mercado de raridades.
Do Brasil, nosso herói voou pro Chile, onde fez uma série de shows, e dali pra Argentina, com aparições na TV, e depois o mesmo no Uruguai, Colômbia, Panamá e México, chamando a atenção e fazendo fãs. De volta à Jamaica em 1969 com várias novas músicas, lançou o álbum “Wonderful World, Beatiful People”, a música-título inspirada no Brasil. Vêm daí também outros clássicos, como “Vietnam” (a preferida de Bob Dylan) e “Many Rivers to Cross” (gravada por Cher, Joe Cocker e longa lista).
Um berro em cada mão
Em 1972 surgiu o filme “The Harder They Come”, de Perry Henzel, que contava a história verídica de Rhyging, um gângster que assombrara Kingston na década de 1940, famoso por usar um berro em cada mão e sempre fazer a polícia de besta. A obra se tornaria um marco na história do reggae, referência a quem queira entender ou tentar entender a realidade e a cosmovisão dos jamaicanos. Além do polícia-e-ladrão, a película trazia uma trilha sonora pinçada no que de melhor a ilha vinha produzindo. Tinha The Melodians, The Maytals, Desmond Dekker, Scotty, The Slickers e nada menos que seis músicas de Jimmy Cliff, entre elas, a faixa-título (de onde saiu “Querem meu Sangue” dos Titãs), “You Can Get it if You Really Want” e “Sitting in Limbo”. E falta dizer que ele fez também – e brilhantemente – o papel principal. O cara estava em todas. Ou quase.
Pela lógica, Jimmy incorporaria a imagem de rebelde e se acoplaria aos planos da Island, envolvida no filme, que então buscava emplacar o reggae como algo rude, novo e diferente na cena rock da Europa e dos Estados Unidos. Só que não. Insatisfeito com os resultados do filme no mercado, frustrado em saber que sequer o disco chegaria em países onde ele já tinha público, como os da América Central e do Sul, Jimmy assinou com a EMI/Reprise, dando outro rumo à carreira. O jornalista David Katz, autor da notável biografia não autorizada de Jimmy Cliff, comenta que ele talvez não soubesse que Bob Marley & The Wailers já estavam na cola de Blackwell, prontos pra entregar o que a Island estava procurando.
Bumba meu reggae
Ao longo da década de 1970, já discretamente ligado ao islamismo, Jimmy fez álbuns como “Unlimited” (1973), “House of Exile” (1974) e “Follow my Mind” (1975), este particularmente importante no Brasil. A música “Going Mad” foi o primeiro sucesso do gênero no Maranhão, trouxe visibilidade para um fenômeno que, anos mais tarde, daria a São Luís o título de Jamaica Brasileira, cravado em reportagem da revista Trip em 1988. Outra desse disco que ainda toca muito em todo o Nordeste é “Look at the Mountains”, bem como a versão pra “No Woman, No Cry”, a mesma que pirou Gilberto Gil num bar da capital maranhense no meio dos 1970. Em 1978 veio “Give Thankx”, que trazia, entre outras, “Bongo Man” e “Love I Need”, popularizadas aqui em uma propaganda de TV que associava cigarro e surfe. E “Meeting in África”, que exaltava suas experiências por lá, primeiro na Nigéria, em 1974, quando se tornou amigo de Fela Kuti, e três anos depois no Senegal, Gâmbia, Mali e Serra Leoa, levando o reggae a lugares inimagináveis.
Meio baiano
Na estreia da década de 1980, com o álbum “I Am the Living” nas lojas, Brasil de novo! – desta vez para uma turnê com Gilberto Gil lotando estádios no Rio, em Belo Horizonte, Salvador, Recife e São Paulo. Com cobertura da imprensa, especial na Globo e outras mumunhas, antecedeu em um ano a breve visita de Bob Marley, que veio, jogou bola e não cantou. A imagem de Jimmy vestindo um abadá, carregado pelo público de Salvador, antecipava a relação profunda que ele desenvolveria com a Bahia, tornando-se parceiro do Olodum e divulgador do samba-reggae, convencendo Michael Jackson e Spike Lee a filmarem no Pelourinho, levando Lazzo Matumbi pra tocar e cantar com ele pelo Brasil e pelo mundo.
Já um superstar, brilhou no documentário “Bongo Man”, de 1982, em que reafirmava seu conhecimento e respeito pela cultura rasta. E surpreendeu com músicas e arranjos que ninguém esperava no álbum “Special”, que tem a participação do stone Ronnie Wood. Em 1983 ressurgiu com “The Power and the Glory”, que trazia seu sucesso mais longevo, “Reggae Night”, presente dos autores Amir Bayyan, do Kool and the Gang, e Latoya Jackson. Em 1985, levou um Grammy pelo álbum Cliff Hanger e, em 1986, participou da trilha sonora e também como ator no filme “Club Paradise”, ao lado de Peter O’Toole e Robin Williams. Fechou a década com “Hanging Fire”, de 1988, mais uma vez ao lado dos caras do Kool and the Gang, álbum em grande parte urdido pelo impacto da turnê africana de 1986, quando esteve no Zaire, Camarões e Costa do Marfim fazendo shows e gravando com artistas locais.
Aquele abraço
Em 1993 galgou as paradas com uma versão de “I Can See Clearly Now”, de Johnny Nash, produzida para o filme “Cool Runnings”. Em 1995, mais uma vez o cinema com “Hakuna Matata”, para Rei Leão. No álbum Fantastic Plastic People, de 2002, produzido com Dave Stewart, da banda Eurythmics, reuniu Sting, Annie Lennox, Tony Allen, Joe Strummer e Gary Mudbone Cooper, do Funkadelic, em um autêntico crossover cultural. E tem também “Rebirth”, de 2012, que faturou o Grammy de Melhor Álbum de Reggae.
Essa síntese pode ajudar a compreender o papel crucial de Jimmy Cliff no reggae, como defendi no começo. Ele ajudou artistas como Desmond Dekker, Roy Shirley, e foi ele também quem deu a mão pra Bob Marley gravar o primeiro single.
Sly & Robbie formaram a mais incrível cozinha das galáxias em “Follow my Mind”, o álbum de 1975. No Brasil, abraçou Gil, Olodum e Lazzo, mas também Cidade Negra, Titãs, Margareth Menezes, Araketu… Peggy Quattro, da Reggae Report, contou que a revista só existia por conta do apoio dele. E até peixe miúdo. Lembro bem que, em 1984, Jimmy rodou o Brasil e foi em todos os programas de TV e posou pra fotos usando a camiseta de um certo Projeto Jamaica-Brasil, que recebera em Kingston, meses antes, das mãos de um jovem jornalista e pesquisador brasileiro. Como é que ele conseguia usar a camiseta direto? “Eu lavo na pia do banheiro do hotel, de manhã tá seca”. Give thankx, mr. Chambers!








