O samba pulsa no coração do Brasil e a origem da sua batida, de sua cadência e de sua alma encontra raízes profundas na Bahia. Foi a migração de milhares de baianos, no final do século XIX, que transportou o ritmo de sua terra natal para o Sudeste, dando-lhe forma — e no Rio de Janeiro encontrou o espaço para se tornar o samba urbano, gravado e popularizado.
Nessa travessia histórica, uma figura central emerge: Hilária Batista de Almeida, a imortal Tia Ciata. Vinda do Recôncavo Baiano. É na semântica do seu local de origem, o Recôncavo, que reside a chave para entender o ritmo. A palavra evoca o formato de roda, um círculo que é, ao mesmo tempo, núcleo cultural, símbolo de ancestralidade e a forma básica de organização do samba de roda.
O samba de roda e o sagrado
O verdadeiro cerne do samba reside no Samba de Roda do Recôncavo Baiano, uma prática cultural que em 2005 foi reconhecida pela UNESCO como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Seu nascimento está intrinsecamente ligado às práticas do candomblé, das festas e dos rituais afro-baianos. Nos terreiros e nas celebrações rurais, o ritmo servia como expressão da religiosidade, do lazer e da resistência.
Essa manifestação é essencialmente ancestral, remontando aos cortejos e batuques de origem africana. No Samba de Roda, a música é executada com instrumentos tradicionais que marcam a pulsação terrestre e espiritual: o prato e faca, o agogô, o chocalho, o pandeiro e, notavelmente, o berimbau – este último um forte elo com a capoeira.

Contudo, o elemento rítmico mais puro e fundamental reside nas palmas, que sustentam e conduzem o canto e o desafio coreográfico, enfatizando a natureza coletiva da celebração e a pulsação orgânica do samba.
A formação e expansão do samba baiano foram solidificadas por figuras históricas que carregaram e refinaram a tradição, muitas vezes à margem do reconhecimento oficial. O compositor Clementino Rodrigues, o Riachão (1921-2020), é um pilar incontornável. Considerado um dos maiores sambistas da Bahia, ele foi autor de mais de 500 composições, notório por seu estilo malicioso e pela capacidade de narrar o cotidiano. Riachão, junto com Batatinha (Oscar da Penha), Nelson Rufino, Ederaldo Gentil (o “ourives do samba”) e Panela, compõe o núcleo da Velha Guarda do Samba Baiano, consolidando sua legitimidade como força criativa autônoma.
O papel feminino, contudo, é vital. Matriarcas como Dona Edith do Prato, que nos deixou em 2009, foi uma grande referência do samba de roda de Santo Amaro, e Mestra Aurinda do Prato, da Ilha de Itaparica – renomada yalorixá e talentosa no toque de prato e faca – simbolizam a matriz cultural do ritmo. Elas, assim como Dona Nicinha (matriarca do grupo Raiz de Santo Amaro) e Chica do Pandeiro (cofundadora do Quixabeira da Matinha), garantem que o conhecimento musical seja transmitido de forma oral e ritualística. Figuras como Tião Motorista e Walmir Lima também contribuíram decisivamente para que o samba baiano alcançasse o cenário nacional.
A gira tem que continuar
Mais de um século após a migração fundadora de Tia Ciata, o Samba de Roda não é uma relíquia histórica, mas um patrimônio vivo, em constante renovação na Bahia. A tradição se mantém e se reinventa através de artistas e grupos que honram a ancestralidade enquanto dialogam com o presente.
A força feminina continua proeminente, com artistas como Mariene de Castro – uma das maiores representantes contemporâneas do samba – e Juliana Ribeiro, conhecida por sua pesquisa e por dividir o palco com grandes nomes da MPB. Seus trabalhos reafirmam o papel das mulheres como líderes e criadoras na continuidade do ritmo.
Além disso, a articulação cultural é mantida por figuras como Edil Pacheco, que se tornou responsável pela edição do evento anual “Dia do Samba na Bahia”. Esses artistas e produtores garantem que o círculo do samba baiano continue a girar, levando adiante a cultura ancestral e a batida original que, da Bahia, se espalhou para se tornar a identidade musical e o maior símbolo cultural do Brasil.
