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Carminho, a restauradora do fado que canta Portugal com alma universal
Carminho

Carminho, a restauradora do fado que canta Portugal com alma universal

Portuguesa mistura tradição e vanguarda em 'Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir'

O universo da boa música pode ser dividido – de modo bem simplificado, diga-se – entre dois grupos: os inovadores e os restauradores. Os primeiros são os que criam um gênero ou tendência a partir de uma determinada matéria-prima. O trompetista americano Miles Davis (1926-1991) e o inglês David Bowie (1947-2016) burilaram novos patamares de excelência para o jazz e o rock, assim como os brasileiros João Gilberto (1931-2019) e Hermeto Pascoal (1936-2025) ultrapassaram os limites do samba e da música instrumental.

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Já os restauradores (e aqui peço para não confundi-los com os conservadores) trazem em seu DNA a essência de um estilo musical de seu país. Ainda que misturem sua música com outros gêneros e absorvam influências de outras nações, eles são a base, a fonte da música que o consagrou. O trompetista Wynton Marsalis e o cantor e multi-instrumentista Prince (1958-2016), a seu modo, são referência do jazz e funk americanos, do mesmo modo que Marisa Monte traduz o universo do samba e da tropicália para as jovens plateias.

Carminho (Billboard Brasil)
Carminho (Billboard Brasil)

A restauradora Carminho

A cantora e compositora portuguesa Carminho, cujo “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir acaba de ser lançado e tem apresentações marcadas para o Brasil em novembro (dia 23 no Vivo Rio, no Rio de Janeiro; dia 24 no Teatro Cultura Artística, em São Paulo, e dia 26 no Centro de Convenções Ulysses Guimarãs, em Brasília) é uma restauradora. No caso, uma restauradora do fado, gênero que, segundo ela, se fez presente pouco depois de sua concepção. “Já era fadista na barriga da minha mãe”, brinca a cantora, em entrevista para a Billboard Brasil. “Ela dizia que aos quatro anos eu já fazia o som da guitarra, da viola e da voz.”

Mas, como boa restauradora que é, Carminho não fez um disco de fado ortodoxo. “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir” é um representante digno do gênero português, mas acrescido de uma sonoridade, de um clima, que se alterna entre o rock alternativo americano e a chamada “música ambiente”.

“Eu venho de uma experiência com o Steve Albini, né?”, diz a cantora, referindo-se ao projeto com o ex-produtor dos Pixies, PJ Harvey e Nirvana, entre outros grupos famosos, que morreu de ataque cardíaco em maio de 2024.

Os caminhos dos dois se cruzaram em 2023, em Chicago, durante a turnê do disco “Portuguesa”. O encontro rendeu o EP “Carminho at Electrical Audio, lançado em outubro do ano passado, no qual gravou quatro canções, entre elas “Os Argonautas”, de Caetano Veloso.

Quando chegamos a Chicago, eu já tinha essa sessão com ele pré-agendada. Não sabia o que que ia acontecer necessariamente, mas tinha consciência de que iria trabalhar com um produtor que era especialista em captar performances vivas”, exulta.

“Essas performances têm erros, têm vertigem, têm a dinâmica do momento. O Steve conseguiu trazer uma crueza às canções, com a gravação em fita, num processo bem analógico, a banda tocando junta no mesmo ambiente. Ele captou a realidade dos instrumentos, algo que na verdade eu já andava a explorar e que tem muito a ver com o fado. O som desse EP que o Steve Albini fez é o mais próximo do som de uma casa de fado que eu já ouvi”, comenta Carminho.

A partir da experiência com Albini, Carminho foi mais além com os caminhos do fado, como se pode notar no álbum. A o esmero da produção atual vai desde a inclusão de instrumentos como mellotron, vocoder, Ondas Martenot e Cristal Baschet – muito comuns na música erudita do século 20 – a guitarra elétrica, além da participação da cantora e vanguardista americana Laurie Anderson, que está na faixa “Saber.

“Ela é uma grande influência da minha vida: como mulher, como artista. A maneira como explora o estúdio, a voz, que explora os sons – não apenas os dela, mas também no que está ao seu redor”, derrete-se.

Carminho entrega que existe uma pequena homenagem a Laurie em meio às canções do disco – mas este que vos escreve não vai dar spoiler. “Fiz essa brincadeira em estúdio, um tributo escondido. Se você quiser ouvir com mais atenção, você vai perceber.”

Carminho (Billboard Brasil)
Carminho (Billboard Brasil)

Amor pelo fado

A trajetória artística de Carminho, antes de mais nada, é a história de amor de uma família pelo fado. Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade cresceu na região do Algarve, sul de Portugal, onde recebia doses maciças desse repertório por parte da mãe, a fadista Teresa Siqueira, e dos amigos da família que a visitavam vez ou sempre. Carminho tinha doze anos quando o pai largou seu emprego como engenheiro e partiu com a família para Lisboa, onde abriu uma casa de fados – um sonho há muito acalentado por Teresa. O que era diversão acabou se tornando uma profissão de fé.

Aos 15 anos, a artista passou a se apresentar na casa de fados de sua família. Todo cantor sabe que a noite é uma das escolas mais implacáveis e importantes na formação – e ali teve mestres extremamente rígidos.

Carminho (Billboard Brasil)
Carminho (Billboard Brasil)

“Uma das fadistas que cantava na Taverna do Embuçado, a casa de fados dos meus pais, chamava-se Beatriz da Conceição. Ela é uma das maiores referências que tenho no fado. Beatriz se sentava à mesa com Celeste, irmã de Amália Rodrigues [a maior fadista de todos os tempos] e bebiam Baileys e galão [nota do tradutor: café com leite].

Beatriz me dizia: ‘Carminho, não podes dizer pão como dizes cadeira, nem pedra, nem sol. Cada palavra tem sua energia, sua emoção e seu significado. Acorda!’ Ela falava de um jeito que me fazia chorar no banheiro”, recorda-se. As carraspanas continuaram: “Há um fado de António Baptista no qual um dos versos diz ‘Valha-me Deus.’ Eu cantava aquilo, as pessoas batiam palmas. Mas quando passei por Beatriz, ela me deu uma bronca: ‘Ai, valha-me Deus, valha-me Deus… Tens que dizer isso como quem tem frio.’ Eu chorava no banheiro mais uma vez, mas hoje sei que ela tem razão. A pessoa quando diz ‘Ai, valha-me Deus’, tem que ser para valer, né? É isso que o fado quer.”

O fado, gênero musical que Carminho defende com tanta galhardia, passou por caminhos sinuosos. Suas origens datam do século 19 e era considerado uma subcultura. As “casas de fado” daquele período eram, acima de tudo, bordéis e uma das principais intérpretes do gênero do período, Maria Severa (1820-1846), tinha ascendência cigana e além do canto atuava nessa espécie de, digamos, “entretenimento adulto”.

Carminho (Billboard Brasil)
Carminho (Billboard Brasil)

Existe uma certa controvérsia sobre suas origens musicais, mas a maioria das literaturas a respeito do gênero apontam influências dos cânticos mouros, da canção medieval, da modinha brasileira – que foi assimilada pelos membros da corte portuguesa quando vieram ao país, no início do século 19 – e dos lundus angolanos (Angola foi colonizada pelo povo português no século 16). Intérpretes da categoria de Hermínia Silva (1907-1993) e Ercília Costa (1902-1985) ajudaram na profissionalização, ao passo que Amália Rodrigues (1920-1999) lhe deu um sopro de vitalidade, ao incorporar outros estilos musicais e poemas de autores contemporâneos. 

O fado, a exemplo do samba no Brasil e do tango na Argentina, foi cooptado pelos órgãos de repressão. Em Portugal criou-se o termo “Futebol, Fado e Fátima” para definir os três pilares da ditadura iniciada por Antônio de Oliveira Salazar (1889-1970) e que terminou na Revolução dos Cravos, em 1974.

Mas o gênero serviu também como oposição. “Coimbra teve muita gente envolvida na luta contra a ditadura. Por ser uma cidade universitária, os estudantes usaram muitas vezes meios que tinham para poder lutar contra a ditadura sem dizer que estavam abertamente a lutar contra ela. A canção de Coimbra, o fado de Coimbra, foi usada como canção de protesto”, diz Hugo Gamboias, um mestre na guitarra portuguesa, que vem ao Brasil em novembro para o tradicional Festival do Fado, ao lado de Carminho e do também guitarrista André Dias.

Carminho (Billboard Brasil)
Carminho (Billboard Brasil)

Carminho, obviamente, não vivenciou esse momento da ditadura, mas teve de lidar com outro tipo de preconceito – o fado, para os seus contemporâneos, era considerado “cafona”. “Quando vim de Algarve para Lisboa, percebi que as minhas coleguinhas achavam o fado algo antiquado. Isso prejudicou até as minhas relações pessoais, eu não era convidada para as festas”, desabafa. Hoje, o que era tão criticado se tornou um dos principais produtos de exportação do país – lado a lado com os técnicos de futebol. A cantora faz parte de uma geração de fadistas que têm renovado o gênero, atraindo admiradores de todos os tipos. “Carminho é tudo o que o fado precisa! Já começa com um pedigree invejável, que deu conhecimento profundo sobre repertório e sobre a história do fado. E também uma sabedoria para saber se mover no meio. Se somarmos a isso um talento ímpar, uma voz única, um carisma gigante e uma coragem sem fim, temos uma estrela!”, derrama-se Paulo Junqueiro, um dos principais executivos da indústria musical brasileira e portuguesa.

O disco de estreia de Carminho, “Fado”, saiu em 2009. Dois anos antes, ela havia participado de “Fados”, produção dirigida pelo cineasta espanhol Carlos Saura (1932-2023), e que fez parte de uma série de homenagens dele aos gêneros musicais – entre eles o tango e a música flamenca. “Eu estava ali, bem novinha, de aparelho nos dentes”, lembra. “O filme tem várias imagens que para mim são bonitas, esteticamente formidáveis, com a visão pessoal dele do que seria o fado.” Entre os novos fadistas, há quem atualize o gênero com ritmos como rap ou quem adiciona elementos não tão estranhos à dolente canção portuguesa. 

Carminho (Billboard Brasil)
Carminho (Billboard Brasil)

Carminho, ao lado de António Zambujo, pertence a esse segundo grupo, e tem um relacionamento firme com a canção brasileira. A discografia da cantora inclui tributo ao maestro Tom Jobim (1927-1994) – o lindíssimo “Carminho Canta Jobim”, de 2016 –, duetos com Chico Buarque, Alceu Valença e Ney Matogrosso e parcerias com Marcelo Camelo e Marisa Monte. Isso, claro, sem perder a essência. “Carminho tem uma grande contribuição pro fado. Preserva muito daquilo que é o fado genuinamente constituído, aquela sonoridade fadista, forma de cantar, os trejeitos, a imposição vocal e até os movimentos de palco. Escolhe um repertório muito bem alinhado com a própria aposta do fado mais tradicional”, aponta o historiador e musicólogo Ivan Lima. 

“Ricardo Rocha, um músico que conheço, diz uma coisa muito bonita sobre o fado. Ele diz que o fado é uma gaiola transparente. E que tu tens que voar dentro da gaiola, mas tu não sabes onde é que tá o limite. Então, é esse jogo bonito e tentador.  Porque tu também queres sair da gaiola, voar, queres ser livre. Mas aquela gaiola não tem barreiras. Ao mesmo tempo, é lá dentro que tu estás neste teu lugar”, teoriza Carminho. “Para mim é desafiante fazer esse percurso dentro da gaiola, no sentido em que me fascina poder experimentar, servindo o mesmo propósito”, completa. E pelo resultado musical de “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir”, serão cada vez mais ousados os voos de Carminho dentro dessa gaiola gigante chamada fado. Um disco de alma portuguesa, mas de sonoridade universal.

Capa Digital Carminho
Carminho estrela capa digital da Billboard Brasil

Carminho no Brasil

A cantora portuguesa traz a turnê de “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir” ao país em novembro.

  • Rio de Janeiro – 23 de novembro (Vivo Rio)
  • São Paulo – 24 de novembro (Teatro Cultura Artística)
  • Brasília – 26 de novembro

 

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