Classificada para a Copa, Cabo Verde tem brega, cumbia, reggae e guitarrada
Uma viagem pela música contemporânea e psicodélica da ilha africana
O futebol de Cabo Verde fez história. Liderados por Telmo Arcanjo e Kevin Lenini, os cabo-verdianos conquistaram a vaga para o Mundial dos Estados Unidos, Canadá e México após vencerem Eswatini por 3 a 0 nesta segunda-feira (13).
E é uma VIAGEM olhar a música da ilha africana onde nasceu Cesária Évora, uma das maiores cantoras do continente. Quase na mesma linha latitudinal do Caribe e do norte do Brasil, ouvir a música do país é também viajar ancestralmente pela música que ecoa em cidades como Belém, Recife e São Luís: tem guitarrada, brega, cumbia, reggae.
Mas, antes, vamos dar um giro pelas canções que explicam a felicidade pela classificação dos tubarões azuis.
Nos vestiários, celebrando a classificação, os jogadores explodiram ao som de funanás como “Tubaron Azul”, do duo Ferro Gaita —feita em 2013 para incentivar a seleção durante a Copa Africana de Nações.
O funaná é um primo que o forró não encontra por causa da distância. Tocado com um acordeão e um ferrinho (que traz o som metálico do triângulo, mas se parece mais com um reco-reco), o ele é um dos gêneros mais populares de Cabo Verde. Tal como no Brasil, o ritmo ganhou adaptações: ora virando conjunto, com a adição de guitarra e baixo elétrico, ora ganhando percussões eletrônicas.
A proximidade com países da costa atlântica do continente também traz outras influências. Um dos hits da comemoração foi “Disgraciado”, uma kizomba da Guiné-Bissau, de Rui Sangara. A kizomba é um gênero enormemente popular em Cabo Verde e também em Angola. Tem sabor de mar, é dançante e foi inspiração para ritmos eletrônicos que tomariam conta do pop africano como o kuduro.
Também utilizada pelos jogadores, a recém-lançada kizomba “Daniel Kalotti”, do MC Tranka Fulha, é um dos sucessos recentes da música pop de Cabo Verde (a letra de Tranka fala sobre uma compra de roupas Gucci e Louis Vitton que ele realizou —mas que, quando chegou em casa, percebeu que havia sido enganado e levado roupas de uma marca fictícia chamada “Daniel Kalotti”):
Outro hit da conquista foi “Ninguém”, do quarteto LA-MC Malcriado. Lançada em 2006, ela se perpetuou na música radiofônica de Cabo Verde e também nas comemorações dos jogadores. A música diz que “ninguém cá pode cu nós oh k nu vira malcriado” (algo como “Ninguém pode com a gente / e se der mole, o bicho pega) e serviu com perfeição para os tubarões azuis.
Outra canção que desafogou o peito dos jogadores foi “Desisti”, da cantora Rislene. Lançada há menos de seis meses, ela já acumula quase dois milhões de visualizações. A letra diz:
Desisti por pouco.
Deixa eu encher meu copo.
Hoje vou beber pesado,
até doer o corpo.
Pra eu não falar besteira, eu fico “shut”.
Na varanda, eu fumo.
À beira de enlouquecer,
Dá-me o protocolo, eu quero mudar.
Uma garrafa não é suficiente
pra tirar da cabeça tudo o que me dói.
Cumbia, guitarrada, reggae e psicodelia
O funaná foi importante para o nascimento de uma onda muito doida em Cabo Verde. Se no Brasil nós tivemos artistas como Alceu Valença entortando o frevo e o maracatu, lá na ilha o ritmo principal deles também ganhou nova dimensão. Vale, inclusive, o resgate dessa regravação do samba “Esperança Perdida” (conhecidíssimo na voz d’Os Originais do Samba):
A ilha cabo-verdiana de Santiago — onde a música funana nasceu — é uma das dez ilhas de um arquipélago que foi colonizado pelos portugueses no século XVI para servir como centro de comércio de escravos para grande parte do Novo Mundo. Com sua colonização, a primeira comunidade de africanos escravizados foi trazida para a ilha, junto com sua música e tradições, que por sua vez se consolidaram na identidade cultural dessas ilhotas desoladas.
O funaná contém letras que expressam o espírito alegre de Cabo Verde. Homens e mulheres se encostam e se movimentavam sensualmente em sincronia com a batida —o que ofendeu os portugueses colonizadores que proibiram o ritmo. Portanto, a música virou resistência.
E dançar, cantar e tocar virou ato político. Nos anos 1960, bandas como Cabo Verde Show, Tulipa Negra, Voz de Cabo Verde e Tropical Power capturaram a importância da luta pela independência. “Oh, Africa”, do Black Power, ilustra essa crescente busca por uma identidade africana — uma ideia que na época era controversa e continua sendo um tema controverso na diáspora cabo-verdiana.
Musicalmente, o funaná ganhou teclados eletrônicos e guitarras mais distorcidas. O funaná, então, foi sendo usado como uma ferramenta para unir as massas (como em todo movimento de luta, havia uma parte da população cabo-verdiana, especialmente os cabo-verdianos no exterior, que se opunham ao movimento de independência e à expulsão dos portugueses).
Aqui, vale uma introdução de outro ritmo muito famoso em Cabo Verde: a morna. Mais calma, branda, e com linguagens afetivas calcadas na saudade, a morna é outro gênero cabo-verdiano, mas com uma visão de mundo própria, em oposição direta ao funaná: sempre foi amada também pela elite colonial. Para os portugueses, a morna oferecia algo conforto. Como saudade pode ser também uma recusa do presente e do futuro, a morna acabava também se opondo ao funaná naquele momento de luta —uma disputa que também permeou a dupla bossa nova e samba no Brasil dos anos 1960 e 70.
Em oposição à morna estava a psicodelia que tomou conta da música revolucionária. Os sintetizadores, afirma-se, ajudaram a modernizar a morna e o funaná por meio de artistas como Paulino Vieira. A inspiração vinha de todos os cantos: do norte-americano Nile Rodgers (guitarrista fundador do Chic), do reggae de Bob Marley, da mecânica (instrumentos foram construídos a partir do ferrinho), do bolero, da salsa e da cumbia da América Latina (os solos de sintetizador ficaram “brincalhões” e surrupiavam ritmos como a cumbia).
Essa música, do conjunto Africa Star, é uma homenagem ao rei do reggae:
No fim, para quem é brasileiro da guitarrada, do brega e do reggae, a brincadeira chama muito a atenção.