Tem quem não goste de reggae, é verdade, ou porque acha muito repetitivo ou porque nunca fumou um baseado, mas mesmo entre os espíritos de porco é difícil encontrar alguém que não simpatize com Bob Marley, cujos 80 anos vêm sendo celebrados em todo o mundo.
O semblante compassivo, o olhar distante e sinestésico passando a ideia de uma contínua conversa interior, o sorriso pastoral, a carapinha em tranças coroando a cabeça e lhe cobrindo as costas como um manto – tudo em sua imagem colabora para nos acharmos diante de um cara bem louco, mas muito legal. Sua atitude nos palcos é outro aspecto comovente. A inquietude dos braços, a pantomima de uma dança explosiva e caótica, os olhos então fechados, por vezes cobertos por uma das mãos, os dreadlocks cortando nuvens de luz e fumaça como chicotes. O showbiz não estava preparado pra isso, mas adorou.
Musicalmente, vamos encontrar um compositor de letras tão simples quanto suas roupas, contudo, repletas de críticas ao sistema capitalista e suas ferramentas de opressão, ricas em sabedorias proverbiais e gatilhos para reflexão, elaboradas em versos e refrões que até quem não sabe inglês entende.
O ritmo é rude e doce, seco e pesado, baseado em linhas melódicas do baixo em precisa combinação com a bateria, síncopes valorizadas por guitarras e teclados, um insinuante naipe de metais e um coro feminino que parece vir do Além. E o que ele canta e diz tem um fundamento espiritual, segue uma doutrina que o faz compreender e fazer música como algo sagrado, com uma conexão divina.
Que Bob Marley é maior do que o reggae, muita gente já percebeu. Mas será que todo mundo entende a dimensão e o poder desse improvável superstar do Terceiro Mundo? Pois os fatos, láureas e números que vêm a seguir são de pirar até os espíritos de porco.
Minas de ouro
“Catch a Fire”, primeiro álbum pela Island Records, vendeu pífias 15 mil cópias quando foi lançado, em 1973. Levaria anos até que atingisse o patamar dos discos subsequentes, cujas vendas iam subindo junto com a popularidade de Marley e o impacto de seus shows na Europa, Estados Unidos, Ásia e África.
Dados recentes apontam para vendas em torno de 43 milhões de cópias da pouco extensa e muito densa discografia no selo de Chris Blackwell, com 12 álbuns (vale dizer, há fóruns sérios na internet dedicados a mostrar que, além de muita pirataria, os números de vendas de Marley são historicamente mal aferidos ou subestimados).
Nessa lista, duas minas de ouro: “Legend” e “Exodus”. O primeiro é uma coletânea de 1984 pensada para agradar o público branco, com pelo menos 25 milhões de cópias e um currículo que inclui 880 semanas não consecutivas entre os Top 200 álbuns da Billboard nos Estados Unidos e o recorde de 273 semanas em 1o lugar no chart Reggae Albums da revista, posição que segue mantendo.
Já “Exodus”, de 1977, obra que calcificou Bob Marley no cenário internacional, tem estimados 8 milhões de cópias, está na lista de 200 Álbuns Definitivos do Rock and Roll Hall of Fame e, em 2000, foi escolhido pela Time como Melhor Álbum do Século 20: “Uma conexão política e cultural, que se inspira no Terceiro Mundo e lhe dá voz em todo o planeta”, firmou a publicação.
Índices atualizados da respeitada plataforma Luminata mostram que, apenas nos Estados Unidos e Canadá, a obra de Marley tem 37 milhões de cópias vendidas e 7,2 bilhões de streams. Sim, porque para além do mundo físico, o rei do reggae tem uma performance espetacular no digital, somando um total de 12 bilhões de streams só no Spotify [os Stones caminham para 11 bilhões, Madonna tem uns 9, Stevie Wonder pouco mais de 7], liderados por “Three Little Birds” e “Could You Be Loved”, com mais de 1 bilhão de streams cada.
Depois do sucesso recente do filme “One Love”, até agora com 180 milhões de dólares em bilheteria, o homem vem bombando em streams e visualizações. E vão muito bem os negócios de licenciamento e merchandising da família Marley em produtos que vão de café gourmet a sorvetes, passando por mochilas, quebra-cabeças e, claro, cannabis também.
Aqui damos uma parada nesse aluvião de números e dólares para recolocar a bola no chão: estamos falando de um artista que morreu há 44 anos, quando estava só começando a ficar mundialmente conhecido!
Encantamento coletivo
Mas dinheiro não é tudo na vida. Sim, seguem em curso negócios milionários entre grandes empresas e os Marleys (o que tem levado muita gente a invocar ideias sobre traição à utopia libertária e anticapitalista legada pelo patriarca), contudo, mais que um artista de sucesso no universo do entretenimento, Bob Marley é, primeiro, um ícone do orgulho negro e do pan-africanismo. A origem humilde em um país do Terceiro Mundo, as críticas ao sistema babilônico e seus algozes e a cumplicidade com a cultura africana e suas comunidades ao redor do mundo certamente ajudaram a construir essa idolatria.
Curiosamente, foi o público branco que o elevou ao estrelato, garantindo não apenas a ascensão como a contínua multiplicação de sua imagem, sua música, sua mensagem. Pois esse público também o vê como alguém referencial, investido de coragem e rebeldia autênticas, personagem revolucionário, que defende liberdade e justiça mas que jamais perde a ternura, capaz de derrubar muralhas e despir os reis e, em seguida, professar a paz e o amor e prometer que “everything’s gonna be alright”. São esse alguns dos signos do encantamento coletivo que lhe permitiu tomar o lugar de Che Guevara e Jimi Hendrix em camisetas, pôsteres, bottons e tatuagens nos cinco continentes, seguir cativando simpatizantes e forjando adoradores geração após geração.
Nesse sentido, Bob Marley é até maior que sua música.
Músicas boas de cantar
No final de 2024, a torcida do Olympique de Marselha estendeu uma enorme faixa 3D que estampava Bob Marley fumando um baseado, com direito à fumaça cênica, durante uma partida contra o Ajax… time holandês que lançou um uniforme em sua homenagem para a temporada 2021/22. Ano passado também, em uma rodada da Premier League reunindo o Crystal Palace e o Chelsea, um problema técnico com o VAR atrasava o início do segundo tempo quando o sistema de som disparou “Three Little Birds”, colocando o estádio em um uníssono emocionante (a torcida do Chelsea entoa essa música desde 2008).
No Brasil é a mesma coisa. A Torcida Jovem do Santos, time para o qual Bob Marley arrastava uma asa, o tem como patrono e estampa seu rosto em camisetas, bonés, faixas, bandeiras e flâmulas. No ano passado, trechos de “One Love” foram exibidos no telão da Vila Belmiro antes do início e no intervalo de uma partida contra o Corinthians, como parte da campanha de lançamento do filme. Clássicos do jamaicano rolavam nos alto-falantes enquanto os atletas se aqueciam em campo. Outro momento simbólico foi promovido em 2016 pela Torcida Rasta do Palmeiras antes da final do Campeonato Brasileiro contra a Chapecoense. O vídeo viral mostra uma banda do lado de fora do estádio atacando com “Is This Love”, cercada por um quase afinado coro de fanáticos. Incrível como essas músicas são fáceis de cantar, quase todo mundo sabe.
Ácida e venenosa, “Get Up, Stand Up”, em parceria com Peter Tosh, virou tema da organização Anistia Internacional, consagrada em efusiva versão que reúne Sting, Bruce Springsteen, Youssou N’Dour, Peter Gabriel e Tracy Chapman. O mesmo ocorre com outra música incisiva, “Zimbabwe”, hoje hino não oficial desse país africano, que Marley presenteou com um show na ocasião de sua independência, em 1980, pagando tudo do próprio bolso. “Three Little Birds” mereceu uma performance global recentemente, puxada ao vivo por 8 mil crianças em um estádio em Manchester, acompanhadas on-line por um coro de outras 50 mil ao redor do mundo. É de arrepiar.
Nos passos do rei do reggae
Os shows de Bob Marley no Japão, em 1979, dispararam por lá um frenesi pelo reggae e, logo em seguida, uma revoada de músicos japoneses à Jamaica (Ryuichi Sakamoto entre eles), base sólida que hoje põe Tóquio entre as maiores reggae cities do mundo. A cena agrega artistas, bandas, sound systems, DJs e selectas, além de um grandioso festival anual, o Yokohama Reggae Sai. Não foi diferente na Nova Zelândia, que deve ao show de Marley em sua turnê pela Ásia uma vibrante cena jamaicana, com música, rastafarianismo e maconha prosperando admiravelmente.
Em São Luís, Jamaica Brasileira, a Esquina Bob Marley, no coração da Liberdade, maior quilombo urbano do país, é um dos pontos turísticos mais visitados. Já São Paulo é brava concorrente de Tóquio, com uma cena igualmente diversa, massiva e até uma rua Bob Marley (Campinas também tem). Uma banda de destaque nacional é a Mato Seco, formada no ABC paulista, que há alguns anos fez um projeto chamado Marley Experience, dedicado a executar seus clássicos tentando soar igualzinho às gravações originais – será que conseguiram? (Veja nas plataformas de vídeo da internet.) Para resumir, um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos, conhecido mundialmente e senhor de uma invejável obra autoral, fez um disco só com covers de Bob Marley. Lançado em 2002, o álbum “Kaya N’Gan Daya”, de Gil, é um dos mais interessantes gestos de admiração e devoção de um artista por outro. E dá pistas muito boas a respeito da grandeza dos dois.
O triunfo da fantasmagoria
O futuro promete. A hiperconexão, a quântica operando nos chips e a inteligência artificial bem desenvolvida (estamos ainda no rústico começo dessa nova onda) sugerem experiências assombrosas na esfera da música e do entretenimento. E Bob Marley continuará um meme nesse ambiente de transformações. Já circulam à larga filmetes em que ele aparece ganhando vida e movimento a partir de fotos muito conhecidas ou até em situações inventadas, tudo criado com IA. Há momentos meio fakes e mal-acabados, mas outros muito convincentes.
Pode não demorar pra que seja possível viver experiências tridimensionais, sensoriais e interativas em shows históricos, recriados realisticamente – e o homem de Trenchtown tem ótimo conteúdo pra oferecer. Ora, já está ao alcance de qualquer um pedir a uma dessas entidades tecnológicas que nos entregue um standart de Sinatra com a voz de Marley. Com bons ou maus resultados, e mesmo que pareçam desrespeito ou heresia, são exemplos de por onde caminha a civilização e da virtualidade perene de certos vultos da fantasmagoria, personagens que tendem a ter sua imagem, sua arte e seu pensamento exponencialmente multiplicados no mundo de doravante. É o caso dos dois aí citados, embora um deles, tenha 2 bilhões a mais de streams, aura messiânica e palavras de profeta – já disseram até que, um dia, pode acabar virando santo.
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10 PAPOS RETOS SOBRE BOB MARLEY, UM CARA FORA DA CURVA
OVELHA QUASE NEGRA
De pai branco e mãe preta, Bob Marley desde cedo percebeu que era uma ave rara e pouco benquista na sociedade jamaicana da metade do século passado, inclusive em família. Para a bisavó materna era o “alemãozinho”; os da idade dele o chamavam de “moleque amarelo” e lhe desciam a mão. Órfão do pai aos 10 anos, foi renegado pelo lado branco da família até que virasse um superstar global.
MYSTIC MAN
Relatos dos que conviveram com ele na infância dão conta de seu apreço por Nimble, o jumento de estimação, que montava a pelo e saltava obstáculos com mais de um metro e meio. Ainda pequeno, era metido a ler o destino nas mãos de pessoas da vizinhança, um quê intuitivo confirmado anos mais tarde por muitos de seu entorno. Dois jovens amigos disseram ter ouvido dele, ainda em 1969, que a morte chegaria aos 36 anos.
LIMPANDO CHÃO
Bob casou-se com Rita em 1966 e, logo em seguida, viajou sozinho ao encontro da mãe em Wilmington, Delaware, Estados Unidos. Limpou chão no Hotel du Pont, trabalhou nas fábricas da Chrysler à noite e, com certeza, foi afetado pelo ideário do emergente movimento Black Power e suas expressões políticas na cena musical norte-americana – como “People Get Ready”, de Curtis Mayfield, que o rastaman emulou (e creditou) na clássica canção “One Love”.
ANJOS NO CAMINHO
Contrariando o mito de um predestinado, Bob Marley ralou para adquirir qualidade musical e conhecimentos sobre história, política e espiritualidade. Joe Higgs o ensinou a cantar, Peter Tosh passou os fundamentos da guitarra, Danny Sims e o sócio Johnny Nash (que em 1972 explodiria mundialmente com “I Can See Clearly Now”) apresentaram os desafios do mercado internacional, a antropologista Dra. Gayle McGarrity tornou-se amiga, professora e conselheira e por aí vai… Ninguém se faz sozinho.
CORTIÇO CHIQUE
Em 1972, Marley passou a ocupar a sede da Island na Jamaica, uma residência de estilo inglês no famoso endereço 56, Hope Road, em uma das áreas mais elegantes da capital jamaicana (hoje o Museu Bob Marley). Chamou a família, a banda e uns amigos rastas e foram viver lá, no melhor estilo Novos Baianos Futebol Clube, dispondo de um campinho, um estúdio de gravação e uma fabriqueta de discos nos fundos. Corridas ao nascer do sol, futebol, ensaios sem fim e encontros amorosos de madrugada fizeram desses dias os melhores de sua vida.
SMOKE TANK
Incansável e exigente, Bob Marley liderava ensaios diários, que começavam por volta das 20h e se estendiam até às 3h da manhã. Assim como fazia nos shows, só começava a cantar quando a banda ajustava o groove com capricho, como requer o bom reggae. Sem veto à fumaça no estúdio, em clima de muita camaradagem, algumas sessões se limitavam à execução de uma mesma música, 20 ou 30 vezes, até que soasse perfeita aos ouvidos do chefe.
AMOR LIVRE
O filme “One Love”, produzido sob a tutela de Rita Marley, é lacônico no que diz respeito às muitas mulheres do marido. Pelo menos seis delas são conhecidas: Pat Willians (mãe de Robert), Janet Hunt (Rohan), Janet Bowen (Karen), Lucy Pounder (Julian), Anita Belnavis (Ky-Mani) e a ex-Miss Mundo Cindy Breakspeare (Damian) – esta a única que aparece representada na biopic, ainda assim de relance, e que, conforme os chegados, foi seu verdadeiro amor.
ELIXIR MISTERIOSO
O saxofonista Glen da Costa conta que, certa vez, no Apollo Theater do Harlem, o trompetista David Madden ousou provar o misterioso suco que Marley levava para o camarim nos dias de show. “David era o músico mais responsável e focado de todos, mas logo percebi ele tocando sem energia, se encostando em mim, não se aguentando nos próprios pés. Ao final tivemos de carregá-lo, ele apagou, ficou um tempão deitado de costas no chão, como um boxeador que levou um nocaute.”
A ÚLTIMA BALADA
Bob Marley foi sepultado com sua Gibson, uma Bíblia aberta no Salmo 23 e, no dedo médio da mão esquerda, um anel que supostamente pertencera a Hailé Selassié, com um Leão de Judá engastado em ouro sobre uma pedra de ônix, presente do filho do imperador etíope. Outro item significativo dessa lista foi uma bala cravada no braço, resquício do atentado no final de 1976, que os médicos à época acharam melhor deixar ali mesmo.
DUAS BÍBLIAS
Há muitos livros e ensaios a respeito de Bob Marley, sua personalidade complexa, seus feitos, conquistas, acertos e deslizes. Uma obra indispensável é “So Much Things to Say”, do radialista, pesquisador e arquivista Roger Steffens. Outro livro visceral é “Catch a Fire”, publicado no Brasil como “Queimando Tudo”, cujo autor, Timothy White (1952-2002), foi editor-chefe da Billboard norte-americana por longo e marcante período. O mundo é uma kombi rasta!
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