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Festival Psica: entenda o Brasil musical que nasce no Norte

Festival Psica: entenda o Brasil musical que nasce no Norte

Psica 2025 (créditos divulgação)

Belém do Pará não recebe apenas o início do inverno amazônico em dezembro. Ela também acolhe, desde 2012, o Festival Psica, que transforma a capital paraense em epicentro de uma nova narrativa cultural para o Brasil. Em sua 13ª edição, recém-declarado Patrimônio Cultural Imaterial da Cidade de Belém, o Psica está muito além da música. Ele é um território de afirmação estética, política, pedagógica e afetiva. Nesse território, a cultura preta, periférica, ribeirinha e pan-amazônica ocupa o protagonismo de referências. Enquanto o Brasil ainda debate se o Norte “existe” culturalmente, a cidade responde com som, cor e coragem. O Festival Psica 2025 não pediu espaço na cena nacional. Ele ocupou, redefiniu e reencantou esse espaço com a força de quem sabe que já é centro.

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Backstage (Pinterest)

O Psica se afirma como um dos eventos mais transformadores da cultura brasileira contemporânea. Isso acontece não apenas por sua escala, com mais de 100 mil pessoas em 2025. A força também vem de sua coragem simbólica. O festival coloca a Pan-Amazônia no microfone e diz: “Escute. Aqui se cria futuro há séculos.” Criado em 2012 por Jeft e Gerson Dias, filhos de um vendedor de CDs de aparelhagem na periferia de Belém e de uma mulher preta trabalhadora, o festival nasceu como um ato de amor às próprias raízes. Ele rapidamente se tornou muito mais do que um encontro de música. O Psica é um território de pertencimento. Nele, a cultura preta, ribeirinha e periférica feita no Norte não é “representada”. Ela comanda. No Psica, não há folclore. Há vida pulsante. Carimbó ao lado de tecnobrega. Samba com cúmbia. Manguebeat com musicalidade afro-indígena. Tudo costurado por um sentimento comum. O sentimento de não precisar migrar para ser valorizado.

Esse é o primeiro grande ensinamento do Psica para o Brasil. A descentralização não é utópica. Ela é efetiva. Enquanto a indústria cultural ainda orbita em torno de eixos tradicionais, como Rio, São Paulo e, às vezes, Recife e Salvador, o Norte já constrói seus próprios circuitos. A linguagem é autônoma. A economia criativa é local. As plateias são fiéis. O Psica prova que artistas do Norte não precisam descer para o Sul para serem reconhecidos. Eles constroem seu próprio palco. No Mangueirão, foram quatro palcos simultâneos. Um deles foi dedicado exclusivamente à aparelhagem, coração pulsante da música popular paraense.

Em 2025, essa força se materializou na programação mais plural da história do festival. De Dona Onete, guardiã do carimbó chamegado, a Mano Brown, voz da periferia nacional. De Nação Zumbi, referência do manguebeat, a The 5.6.7.8’s, banda japonesa cuja energia punk dialoga com a irreverência amazônica. De Urias com Jaloo, ícones da cena LGBTQIA+, a Fruto Sensual, que traduz a cultura das aparelhagens e seus sistemas de vida. Somam-se a isso Batucada Misteriosa com Toró-Açu, com seu protagonismo juvenil do carimbó pau e corda. Também se junta a esse encontro o reviver saudosista do bom samba feito em Belém pelo Grupo Manga Verde. Enfim, vivemos inúmeras possibilidades de conexão sonora. Quem viveu, viveu. O Psica é um mapa sonoro do Brasil que queremos. Um país que não fala uma só língua, mas muitas. Todas entrelaçadas, como diz o Manifesto deste ano: “A Pan-Amazônia é uma só língua em milhões de vozes.”

Mas o festival vai além dos shows. O tema deste ano, “O Retorno da Dourada”, pesquisa criativa desenvolvida por mim, é uma metáfora que atravessa biomas e fronteiras. A dourada é um peixe migratório que percorre 11 mil quilômetros pela Pan-Amazônia. Ela é símbolo da circulação viva de saberes. Também representa a cultura que viaja de Marajó ao Peru. Representa o alimento que nutre corpos e identidades. Representa a memória que se renova sem apagar as raízes. A Amazônia não é periferia. Ela é fonte. Olhem para “Mediciland”, a feira gastronômica do festival, e mergulhem em uma infinidade de nossos sabores. Vale observar também os produtos diretamente ligados à direção criativa do festival, como o “Vídeo-Manifesto” e o “Cortejo Encantado”.

Falando nele, vale grifar sua magnitude como abertura do festival. Ele agregou pelo menos 200 artistas e fazedores de cultura. Também atraiu o público transeunte pelas ruas da Cidade Velha. Esse momento é primordial. Ele apresenta nosso conceito ao público. Ele também valoriza quem vive na guerrilha da cultura popular, urbana e de massa no estado. Sempre temos viventes de várias manifestações e festejos populares. Este ano, por exemplo, tivemos a Marujada de Bragança e o Tambor de Crioula. Tivemos mestres vivos de carimbó e capoeira, como Thomaz Cruz e Mestre Nazareno, do Grupo Rei da Capoeira. Tivemos grupos parafolclóricos, como o Trilhas da Amazônia e a Cia. de Dança da Amazônia. Tivemos lideranças POTMAS (Povos Tradicionais de Terreiro). Tivemos jovens atores da Escola de Teatro da Universidade Federal. Tivemos bandas de fanfarra como a Enedina Music Show, vinda diretamente de Igarapé-Miri. Tivemos uma juventude indígena representando uma diversidade de etnias, como Baré, Munduruku, Gavião, Juruna, Guajajara e Tembé. Tivemos escolas de samba tradicionais como a Embaixada do Samba Império Pedreirense. Tivemos pássaros e boizinhos. Este ano, o destaque foi o Vagalume da Marambaia. Enfim, sempre uma grande representatividade da diversidade cultural que nos inunda e persiste em existir.

É exatamente disso que o Brasil precisa. O Brasil precisa beber da fonte. Esse é o segundo grande ensinamento. Em um momento de crise de narrativa nacional e climática, em que o que nos une parece esgarçado, o Psica oferece um modelo de união sem uniformidade. Ele mostra que é possível celebrar o local sem fechar fronteiras. Também mostra que é possível honrar o ancestral sem negar o contemporâneo. É possível ser latina, negra, ribeirinha, periférica e, ainda assim, falar com o mundo.

Mais do que um evento, o Psica é um ato de soberania cultural. Ele movimenta a cultura local. Ele forma plateias críticas. Ele emprega centenas de pessoas, da equipe técnica aos vendedores ambulantes. Acima de tudo, ele devolve dignidade a quem sempre foi tratado como “regional”. O Norte não quer migalhas de visibilidade. Ele quer paridade. O Psica prova que isso é possível. Ao declará-lo Patrimônio Cultural Imaterial, Belém não apenas homenageou um festival. Ela protegeu um modelo. Esse modelo entende que a cultura não é mercadoria. Ele forma uma economia respeitosa. Ele também afirma que resistência pode ser alegria. Nesse modelo, o público não é consumidor. Ele é comunidade. Nele, a arte não é escapismo. Ela é território de reexistência. Esse é nosso terceiro grande momento pedagógico. Quando recortamos quem está dentro do festival e o opera, revertimos lógicas perversas de exploração. Também valorizamos os verdadeiros difusores da cultura pan-amazônica.

O Brasil inteiro deveria prestar atenção no Norte. Porque o futuro da cultura brasileira não está chegando. Ele já está aqui. Ele está breado, colorido, ensolarado, molhado, sereno. Ele canta carimbó na feira. Ele pulsa no brega das aparelhagens. Ele ecoa no rap amazônico. Ele vive nas encantarias das nossas travessias. Ele desce rios dentro de canoas.


Bruna Suelen é articuladora cultural, artista, pesquisadora e Diretora Criativa do Festival Psica

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