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Bruce Springsteen se reinventa em ‘Salve-me do Desconhecido’
Salve-me do Desconhecido

Bruce Springsteen se reinventa em ‘Salve-me do Desconhecido’

Filme retrata gênese de 'Nebraska', obra-prima da discografia do cantor

Asbury Park é uma cidade litorânea do estado de Nova Jersey. Situada a 90 quilômetros de distância de Nova York – o que dá, aproximadamente, 1 hora de carro ou 1h40 de trem –, tem uma bela praia, decorada por calçadões de madeira (ainda que os brinquedos abandonados e os rasantes ameaçadores das gaivotas nos transportem para um conto do mestre americano do terror Stephen King). O cenário litorâneo é completado por bares e uma loja de discos, a Unwind, que vende mestres do classic rock por 2 dólares e bandas hardcore para os locais – que, segundo o proprietário do lugar, amam punk–, mas faz questão de estampar em sua frente os trabalhos do maior rebento da cidade – um certo cantor e compositor chamado Bruce Springsteen.

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O astro, claro, é o principal motivo para que um grupo de jornalistas de diversos países fosse enviado para a cidade. Para sermos mais claros, sua cinebiografia. “Bruce Springsteen: Salve-me do Desconhecido”, em cartaz nos cinemas do mundo inteiro desde o final de outubro, narra um período particular turbulento na carreira de Bruce: depois do sucesso estrondoso de “The River”, de 1981, ele retornou para New Jersey, mudou-se para um sítio isolado no município de Colts Neck e criou o que pode ser considerado uma das obras fundamentais de sua trajetória: o disco “Nebraska”, de 1982, gravado de modo caseiro e que trazia canções inspiradas no folk americano e no blues dos pioneiros John Lee Hooker (1917-2001) e Robert Johnson (1911-1938), além de letras que falam sobre crimes e inadequação social.

“Eu queria fazer histórias tristes para adormecer, aquela música que soava tão bem com as luzes apagadas”, declarou Bruce em “Born to Run”, sua autobiografia. “Aquelas canções eram o oposto do rock que eu andava escrevendo. Eram contidas, com uma superfície estagnada a esconder o mundo de ambiguidade moral e desassossego que havia por baixo”, continuou.

O cantor e guitarrista Bruce Springsteen durante apresentação em Manchester (Reprodução)

“Bruce Springsteen: Salve-me do Desconhecido” é uma produção de 50 milhões de dólares, dirigida por Scott Cooper (de “Coração Louco”, que deu o Oscar de Melhor Ator para Jeff Bridges) e estrelada por dois dos atores mais celebrados da atualidade: Jeremy Allen White, o chef do seriado “The Bear”, se encarrega de dar vida a Bruce Springsteen (com gritos primais e tudo) e Jeremy Strong, o atormentado herdeiro de “Succession” interpreta Jon Landau, empresário do autor de “Born in the U.S.A”. Outros destaques no elenco são Odessa Young, que faz uma namorada do cantor (na verdade, uma combinação de algumas das mulheres com as quais ele saiu nesse período); Stephen Graham, do premiado “Adolescência”, é Douglas Springsteen, o abusivo e atormentado pai do cantor, e Grace Gummer, filha de Meryl Streep, é Barbara, mulher de Landau, que muitas vezes atua como a consciência do empresário.

Um conselho importante para se entender a produção é que ela não se trata de um filme estritamente musical. É, na verdade, muito mais sobre questões humanas do que simplesmente um apanhado de canções costurando uma trama. “É um filme sobre integridade, autenticidade e cura”, decretou Jeremy Strong no talk show do ator, escritor e apresentador Stephen Colbert. Na casa noturna Stony Pony, local escolhido para as entrevistas (e que tem um papel importante no filme e na própria vida de Springsteen), o cineasta Scott Cooper explica mais sobre a necessidade de se falar de Bruce e desse disco em particular. “Quando se faz um filme sobre Bruce Springsteen, estamos falando sobre a alma americana. E estamos descobrindo que ele está lidando com um trauma em sua vida, que tem medo do sucesso e não é mais como as pessoas com quem ele cresceu”, explica.

Posto isso, é necessário explicar um pouco sobre a importância de Bruce Springsteen. O público brasileiro, em sua maioria, o conhece dos urros que ele dá em “We are the World”, canção do projeto USA for Africa, e de “Born in the U.S.A.”, disco de 1984, cuja canção-título foi usada como um hino ufanista pelo governo daquele período – ou seja, tudo que ela NÃO É. “‘Born in the U.S.A.’ se mantém como uma das melhores e mais incompreendidas canções. A combinação de seus versos blues ‘para baixo’ e do refrão declarativo ‘para cima’, a exigência do direito de ter uma voz patriota ‘cítrica’, juntamente do orgulho do lugar onde se nasce, parecia ser conflituosa demais (ou então era simplesmente incômoda) para alguns dos ouvidos mais despreocupados e menos perspicazes. Os discos são, muitas vezes, testes auditivos de Rorschach: ouvimos aquilo que queremos ouvir”, decreta ele em sua autobiografia.

Jeremy Allen White como Bruce Springsteen
Jeremy Allen White como Bruce Springsteen (YouTube)

Bruce Frederick Joseph Springsteen é, para a maioria dos americanos, o cara que “chegou lá”. Um herói da classe operária que se tornou um dos maiores astros da música do país contando e cantando justamente os dilemas das pessoas de sua condição social. Durante a infância, Bruce sofreu abusos verbais e psicológicos do pai, Douglas (tempos depois, descobriu-se que ele sofria de depressão). Em 1964, depois de assistir aos Beatles no programa do apresentador Ed Sullivan, Springsteen comprou sua primeira guitarra e passou boa parte da década se apresentando em bares do litoral de New Jersey e localidades de outros estados, como Nashville, no Texas, e Richmond, em Virginia. Em 1972, Jon Hammond, o mesmo produtor que contratou Bob Dylan nos anos 1960, levou Bruce para a gravadora CBS.

Na companhia, Springsteen lançou dois discos – “Greetings from Asbury Park, NJ”, e “The Wild, the Innocent & the E Street Shuffle”, ambos de 1973 –, de ótimas críticas e péssimas vendas. Em 1974, contudo, o jornalista Jon Landau assistiu a uma performance do cantor num teatro em Cambridge, cidade do estado de Massachusetts, e declarou: “Eu vi o futuro do rock e ele se chama Bruce Springsteen.” Landau se tornou, então, o empresário de Bruce e seu principal mentor.

A combinação do talento de Bruce com a visão e o acolhimento de Landau fez com que o cantor se tornasse um dos roqueiros americanos mais bem-sucedidos da história. Discos como o já citado “Born in the U.S.A” e “Born to Run” e “The River”, lançados respectivamente em 1975 e 1981, estão entre os principais clássicos desse gênero em todos os tempos. E muito desse se deve, claro, ao talento de Bruce e da fé inabalável de Jon em seu artista e amigo. “Grande parte desse filme é uma espécie de teste da fé e da compreensão de Jon em Bruce e na sua escolha de fazer uma direção artística e espiritual em vez da comercial. Eu adorei contar a história da amizade entre os dois, que dura 50 anos”, diz Jeremy Strong, em entrevista para a Billboard Brasil, num bar localizado à beira da praia de Asbury Park. 

Strong é conhecido por ser um ator intenso, que busca incessantemente pela alma dos personagens que interpreta. Durante a entrevista, olha fixamente no repórter com o qual está falando – mas, durante a resposta, evita ao máximo o contato visual. 

Uma das características de seu Landau está na perfeição com o qual emula o tom de voz de seu personagem – um vocal grave e pausado, mas firme o suficiente para explicar a um diretor de gravadora (uma interpretação fora de série do ator David Krumholtz) que o disco de Bruce será lançado da maneira que o astro deseja e não do jeito que a gravadora espera. “Quando você interpreta personagens baseados em pessoas reais, você as estuda e lê sobre elas até seus olhos praticamente pularem fora da cabeça. E nesse caso, havia muito material de origem, além da presença constante de Bruce e de Jon no set de filmagem – e então eu pude checar direto da fonte como este ou aquele momento da história aconteceu”, responde. Mas e a voz? “A voz de Jon é muito específica e um ponto importante no processo. Eu quis, então, reproduzi-la da melhor maneira possível.”

Fundada em 1974, a casa de shows Stone Pony tem uma função importante na carreira de Springsteen. Foi ali que ele se apresentava regularmente e foi naquele local em que conheceu sua atual mulher, a cantora e guitarrista Patti Scialfa (e, óbvio, ele deu um rasante no local no meio das entrevistas para cumprimentar o elenco). Nada mais natural, portanto, que o Bruce do cinema desse entrevistas naquele local, juntamente com o cineasta Scott Cooper. Jeremy Allen White é de uma timidez absurda a ponto de também desviar o olhar do entrevistador na hora da resposta (tudo bem, ele não perdeu muita coisa mesmo). Mas como é dar vida ao ídolo Bruce Springsteen? 

“Inicialmente, eu comecei a me preocupar com a parte externa do Bruce. Porque pelo fato de ter aquela voz rouca e aquele jeito de andar, Bruce foi imitado por todo mundo. Mas depois quis analisar o homem que existe além de Bruce e suas motivações para criar ‘Nebraska’”, explica o ator. “Comecei a enxergar alguns paralelos entre a minha trajetória e a dele, sabe? Observei o jovem Bruce naquele momento específico e busquei conexões. E quando essas coisas se tornaram mais ricas e compreendidas, pude então trazer de volta o Bruce Springsteen com o qual todos estão familiarizados.”

“Bruce Springsteen: Salve-me do Desconhecido” é sobre um período específico da carreira do cantor e um dos mais especiais de sua existência: fala do momento em que ele reconheceu sofrer de depressão e, depois de algum tempo, ter força para entender e aprender a amar o próprio pai. “Grande parte desse filme é sobre a relação pai e filho e o verdadeiro anseio e desejo de conexão. Eu ouvi Bruce falar sobre a relação com o pai”, diz Scott. E White complementa. “Muitas vezes, ao conversar com as pessoas sobre Bruce ou durante o processo de divulgação do filme, elas entenderam que Bruce não gostava do pai. Não é isso, nunca foi o caso. Essas coisas aconteceram quando ele era uma criança e estava confuso. Mais tarde, descobriu que o pai estava lidando com uma série de doenças mentais. Mas seu anseio por conexão sempre foi inabalável”, desabafa o ator. E Jeremy Strong dá o veredito final. “Espero que o filme contribua muito para tirar o estigma dos problemas da mente e da depressão. Se até Bruce Springsteen pediu ajuda profissional, não há vergonha alguma em pedir também”, pontua. 

Em tempo: “Nebraska” é um dos melhores trabalhos da discografia de Bruce Springsteen. Saiu sem foto do cantor na capa, sem entrevista promocional e turnê. Composto de canções acústicas que traziam contos sobre desajustados, o levou para outro patamar de composição e vendeu 1,4 milhão de cópias no mundo inteiro. Durante o processo de composição do disco, ele criou boa parte das canções que fariam parte de “Born in the U.S.A”, cujas vendas mundiais passaram dos 30 milhões de cópias – aliás, no final de outubro foi lançada uma caixa especial de “Nebraska”, que traz como extra os primeiros rascunhos de “Born in the U.S.A”. “Espero, por conta desse filme, que se veja isso como um lado diferente de Bruce Springsteen, algo que você não esperaria ver no Rio, em São Paulo ou em qualquer outro lugar do mundo”, resume Scott Cooper. E certamente verão graças à sensibilidade das pessoas envolvidas na produção.

Veja a entrevista com elenco de “Bruce Springsteen: Salve-me do Desconhecido”

Sérgio Martins analista o filme “Salve-me do Desconhecido”

 

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