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Está mais do que na hora de valorizar o samba paulista dos anos 1990

Está mais do que na hora de valorizar o samba paulista dos anos 1990

Pagode 90 (Lucas Vieira/Billboard Brasil)

No final dos anos 1980, uma pequena revolução começou a tomar conta das casas de samba de São Paulo e arredores – principalmente o Só pra Contrariar, um estabelecimento localizado no Bixiga, na Zona Central da cidade, e o Choppapo, em São Bernardo do Campo, na região do ABC. Um grupo de jovens cantores e instrumentistas nutriu seu repertório de partidos-altos, sambas-enredo e sambas-canção com o que havia de mais moderno na black music internacional. Uma canção de Beth Carvalho ou Jovelina Pérola Negra, por exemplo, era sucedida por um Stevie Wonder ou Michael Jackson, que ganhavam um sacolejo típico do samba rock. Um batuque mais tradicional poderia ter arranjos próximos ao soul e ao funk, que aquele punhado de garotos estava escutando.

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O approach paulistano dado ao samba tradicional se tornou um fenômeno de vendas. Praticamente todos os conjuntos daquele período saíram do mercado independente para as gravadoras majors e suas apresentações se mudaram das quadras de escola de samba e pequenas casas noturnas para as principais casas de espetáculo. O êxito dessa leva de artistas, todavia, despertou o despeito por parte de alguns sambistas tradicionais, principalmente os do Rio de Janeiro. Bandas como Katinguelê, Negritude Junior, Art Popular e Exaltasamba, entre outros, foram premiadas com o desconfortável epíteto de “pagode mauricinho”.

O tempo passou, a cena ganhou corpo e, mais uma vez, o samba de São Paulo mostrou a que veio e prevaleceu. Hoje é possível perceber a influência desses artistas e de sua batucada pop em nomes da nova geração – casos como Menos é Mais e Atitude 67 – e, entre os sambistas do Rio, outrora contrários à invasão de sua praia, é nítida a pegada nos trabalhos de nomes como Mumuzinho, Ferrugem e Marvvila, mesclada ao DNA das raízes do partido-alto carioca. Este reconhecimento, aliado à memória afetiva, é a receita infalível de projetos como “Tardezinha”, de Thiaguinho, e “Numanice”, de Ludmilla.

Quem viveu o rebentar daquele movimento também colhe os frutos do que plantou no batuque e na convivência. Netinho, Márcio Art e Chrigor — nomes que um dia incendiaram palcos com Negritude Junior, Art Popular e Exaltasamba — voltaram a se encontrar no “Samba 90 Graus”, roda que reacende a chama dos tempos dourados do pagode. Salgadinho, o eterno Katinguelê, transformou sua “Casa do Salgado” em ponto de encontro e memória, e acaba de lançar um single ao lado de Allyson Dias. Pixote e Turma do Pagode, outros herdeiros desse legado, seguem celebrando sua história em discos que soam como relíquias encapsuladas na música brasileira.

Turma do Pagode (Lucas Vieira/ Billboard Brasil)
Turma do Pagode (Lucas Vieira/ Billboard Brasil)

Pesquisas nas plataformas de streaming também reforçam o bom momento do samba e desenham o perfil do público. Na Deezer, o fã consome tanto nomes tradicionais como Martinho da Vila e Beth Carvalho quanto vozes mais pop como Xande de Pilares. Já no Spotify, o consumo do gênero cresceu 133% nos últimos cinco anos, com predominância de ouvintes jovens que se conectam ao legado dos anos 1990. São Paulo lidera a escuta, à frente do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.

Para entender essa ascensão, é preciso retroceder aos anos 1970, auge dos bailes de equipes de som como Chic Show, que apresentavam ao público jovem preto o melhor do funk e do soul americano. Na década seguinte, esses bailes passaram a trazer artistas internacionais ao país. Salgadinho e Márcio Art lembram como esses encontros moldaram sua formação musical.

O samba sempre fez parte da vida desses jovens, mas de outra forma. Além dos bailes, escutavam os sambas que seus pais ouviam: Martinho da Vila e Bezerra da Silva. A chegada do Fundo de Quintal, com novos instrumentos e a informalidade do samba tocado sentado, mudou tudo. Os grupos paulistas começaram então a se criar nas quadras e casas noturnas, acompanhando grandes nomes cariocas e acumulando experiência.

Pagode 90
Pagode 90 (Lucas Vieira)

A ascensão do Raça Negra no início dos anos 1990 também influenciou o movimento. Seu estilo misturava swing, romantismo e referências a ídolos como Jorge Ben Jor e Tim Maia. Visual e postura também foram influenciados pelo rock dos anos 1980 e pelos bailes black, refletindo-se nas roupas inspiradas em Earth, Wind & Fire. O movimento conquistou espaços nobres como Palace, Olympia, Canecão e até o Teatro Municipal de São Paulo, onde o Negritude Junior gravou um “Acústico MTV”.

O ritmo moderno, com nuances de R&B, incomodou setores mais tradicionais do samba. Beth Carvalho era uma das críticas, enquanto nomes como Jorge Aragão e Arlindo Cruz apoiavam os grupos paulistas. As críticas, porém, apenas impulsionaram o movimento, que se espalhou por todo o país, influenciando grupos como Só Pra Contrariar, que lançou um dos discos mais vendidos da história.

Embora os tempos de ouro das grandes vendas tenham passado, os artistas seguem com carreiras consistentes e agendas cheias. Os discos atuais trazem medleys para reforçar a memória afetiva do público e se adequar ao consumo digital, exigente por faixas curtas. O chamado “pagode mauricinho” também se revelou um instrumento de afirmação, já que falar de amor permitia acessar espaços que discussões raciais e políticas não alcançavam. Para críticos como Carlos Eduardo Miranda, a originalidade desses grupos superava até a do rock nacional da época

Pagode 90 (Lucas Vieira/Billboard Brasil)
Pagode 90 (Lucas Vieira/Billboard Brasil)

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