Você está lendo
Como o mercado internacional vê a música brasileira?

Como o mercado internacional vê a música brasileira?

Anitta

A história mais comum sobre a música brasileira costuma destacar apenas os marcos oficiais, com nomes como, Carlos Gomes, Carmen Miranda e a Bossa Nova, como se nossa identidade musical tivesse nascido pronta, sem conflito.

VEJA TAMBÉM
ABBA Voyage (Johan Persson)

Mas, como nos lembra Aldir Blanc em Querelas do Brasil, “O Brazil não conhece o Brasil”. O que chamamos de “música brasileira” é resultado de camadas de violência e resistência: das matrizes africanas escravizadas, das nações indígenas perseguidas, dos povos mestiços e empobrecidos que cantaram para existir. Hoje, ao refletir sobre como o mundo nos enxerga, é necessário olhar primeiro para dentro: reconhecer quem fomos, quem somos e quem tem contado essa história.

Desde as viagens internacionais que comecei em 2003, passando pelas feiras como a WOMEX e por festivais como Roskilde e Colours of Ostrava, até chegar à pesquisa de mestrado em que estudo as conexões afro-diaspóricas entre Funk, Fado e Funaná, fui construindo um olhar decolonial que dialoga com Stuart Hall, Gayatri Spivak e Néstor García Canclini.

Não basta festejar o que exportamos. É preciso entender que identidades são campo de disputa e que o Brasil institucional sempre elegeu como legítimas as estéticas brancas e urbanas, mesmo quando o mundo inteiro já percebia a força das nossas raízes negras e indígenas. Em 1922, por exemplo, enquanto a Semana de Arte Moderna tentava “inventar” um país moderno, Os Oito Batutas, liderados por Pixinguinha, eram recebidos com entusiasmo em Paris, ao mesmo tempo em que sofriam ataques da imprensa brasileira por supostamente “mancharem” a imagem nacional.

Esse tensionamento acompanha toda nossa história de exportação cultural: Carmen Miranda virou símbolo de um Brasil tropical para Hollywood enquanto a cultura baiana que inspirava seu figurino era marginalizada; o samba foi embranquecido enquanto o candomblé era perseguido; e hoje o Funk Carioca, que nasce dos terreiros, dos bailes e das favelas, ainda luta por legitimidade, mesmo quando artistas como Deize Tigrona influenciam a pop music global.

Mas o mundo vê, e ouve.

O curador português Fernando Souza resume bem o que o mercado internacional reconhece:

“No Brasil, a música é afronta e libertação: rompe tabus, denuncia desigualdades e exalta o corpo e a diferença, sobretudo a partir das periferias.” Casa da Música, Porto

A curadora e produtora Carolina Vallejo destaca a sofisticação dessa força:

“Ao longo das décadas, a música brasileira influenciou o mundo acrescentando raízes afro de maneira profunda e elegante, mantendo-se fiel às raízes e às ruas.” One World Records, Dinamarca

Já o diretor e curador Bill Bragin observa nossa voracidade criativa:

“Artistas brasileiros devoram estilos globais, do pop à eletrônica, ao rock e ao funk, e ainda assim criam algo que só pode ser chamado de brasileiro.” The Arts Center at NYU Abu Dhabi / globalFEST, EUA

Essa identidade híbrida faz com que o Brasil seja amado mas ainda difícil de ser compreendido em toda a sua diversidade e, portanto, de circular.

Como lembra Filip Kostalek, do festival Colours of Ostrava:

“Há enorme talento no Brasil, mas ainda existe distância entre os mercados, e é preciso criar pontes com países não lusófonos para que mais artistas circulem pela Europa.” Colours of Ostrava, República Tcheca

No Reino Unido, segundo Russ Slater Johnson, da Songlines:

“A afinidade com a música brasileira vem da Tropicália, da Bossa Nova, do Jazz. Os grandes como Gil, Caetano e Os Mutantes lotavam o Barbican e o Royal Albert Hall. Hoje, nomes como BaianaSystem, Liniker, Don L e Mari Froes seguem abrindo caminhos, menos massivos, mas consistentes. A música brasileira sempre encontra seu espaço aqui.” Songlines, Reino Unido

A produtora e curadora Christine Semba reforça o alcance dessa diversidade:

“A cena musical brasileira é vibrante, diversa, inovadora e profundamente enraizada em suas muitas tradições. Nos palcos da WOMEX, vemos artistas que vão do som mais ancestral ao baile funk que hoje pulsa nas pistas internacionais, sempre com musicalidade forte e presença de palco marcante. Essa variedade é a própria identidade brasileira, e é isso que fascina o mundo.” WOMEX Advisor / Head of WOMEX Academy, Piranha Arts (França/Alemanha)

E encontra mesmo. Em 2024, Jonathan Ferr emocionou Manchester tocando Sino da Igrejinha para Exu; Hermeto Pascoal foi homenageado na WOMEX. Em 2025, As Suraras do Tapajós levaram os cantos da floresta à Finlândia; K’boko encerrou o Club Summit em Berlim com atabaques e eletrônica.

O Brasil foi presente com sua delegação junto à Funarte e à BM&A, com o palco Off Womex apresentando sua diversidade com como nomes como Flaira Ferro e Esdras Nogueira, e abriu caminhos, comigo e o DJ Barata, na tradicional opening party da WOMEX. Tava tudo dominado do começo ao fim!

Eu escrevo este artigo de Paris, onde me apresento no Musée du Quai Branly, o principal museu etnográfico da Europa, ao lado de três nações indígenas, às vésperas da COP 30 em Belém — cidade cantada na minha música Sambarimbó: “Voei do Rio pro Pará”. Rio e Pará, periferias e florestas, Mata Atlântica e Amazônia, samba e carimbó, funk carioca e tecnobrega, ancestral e urbano: esse é o Brasil que o mundo quer ouvir.

Não o Brasil que nos ensinaram a admirar, mas o Brasil que resistiu para existir.

O mercado internacional enxerga a música brasileira como potência cultural, espiritual e estética. Mas essa potência só se realiza plenamente quando o próprio Brasil reconhece suas raízes.

Aqui em Paris, cidade onde Os Oito Batutas ecoaram nossa música cem anos atrás, a memória de Lô Borges, que nos deixou anteontem, passa como o “Trem Azul” que insiste em atravessar a mente, e não o Trenzinho Caipira de Villa-Lobos. Sua obra, dialogando, Bossa Nova, com Beatles na Tropicália das raízes afro-indígenas de Minas, revela na prática o que Lélia Gonzalez chamou de amefricanidade: uma identidade musical que não imita, mas reinventa o mundo desde o Sul. Ao lembrar de “Para Lennon e McCartney”, penso no encontro recente de seu conterrâneo Sérgio Pererê com Badi Assad no palco Off WOMEX, onde essa herança híbrida continua viva, afirmando que pertencemos ao planeta sem abandonar o chão que nos forma.

_______________________________________________________________________________

DJ MAM é multiartista, compositor, pesquisador, mestrando em História da Arte pela UERJ, produtor e DJ. Já se apresentou em festivais como Roskilde, WOMAD, Réveillon de Copacabana e foi residente da Casa Brasil nas Olimpíadas de Paris 2024. Une ritmos brasileiros e sons globais em obras que celebram a ancestralidade, movimento e pertencimento.

 

 

Mynd8

Published by Mynd8 under license from Billboard Media, LLC, a subsidiary of Penske Media Corporation.
Publicado pela Mynd8 sob licença da Billboard Media, LLC, uma subsidiária da Penske Media Corporation.
Todos os direitos reservados. By Zwei Arts.