De sexta a domingo, jovens do país todo se encontram para dançar e curtir. “Cultura de baile no Brasil já é hábito, é como festa junina, tradição, só que toda semana, o que é melhor ainda, né?”, brinca Emílio Domingos, cientista social e cineasta, diretor dos documentários “Chic Show” e “A Batalha do Passinho”.
Para Lys Ventura, DJ, pesquisadora musical e idealizadora do Baile da Ventura e Fresh! Dancehall, o costume começa em casa: “É uma manifestação de família. O mais velho passa pra gente, e a gente leva pra rua, e quem está ali se identifica.” A dançarina, pedagoga e pesquisadora de funk Renata Prado, da Frente Nacional de Mulheres no Funk, complementa que vê o baile como espaço de partilha além do núcleo familiar. “Às vezes não conseguimos ter esse espaço em casa. Então o baile é reorganização comunitária, a partir de uma perspectiva cultural que nos conecta”, diz.
As particularidades de cada região fazem do baile uma experiência única, mas a sensação de pertencimento e o prazer de se mexer ouvindo música é a raiz comum dessa cultura, que começa no Brasil no fim dos anos 1950.
Na época, não era proibido ao público negro frequentar os bailes de orquestra em São Paulo, mas o preço inviabilizava. Frustrado por não poder ir aos salões “bacanas”, Osvaldo Pereira, técnico em eletrônica, construiu um som potente e, após um ano em festas familiares, conseguiu espaço num clube e lançou o baile da Orquestra Invisível Let’s Dance. Hoje, Seu Osvaldo é considerado o primeiro DJ do Brasil. A “orquestra invisível” se popularizou e outros bailes surgiram, mobilizando a comunidade negra.
Nos anos 60, a pista ganhou mais música brasileira: começou com Glenn Miller e Sinatra, chegou ao samba-rock. Mas os jovens queriam novidade. “O novo sempre vem com a coisa do diferente. Se perguntar pro Luizão o que eles queriam quando começaram a Chic Show, era ouvir ‘balanço’, o funk e soul dos EUA”, diz Paulo Brandão, o Primo Preto, produtor cultural e nome da RapSoulFunk, que comanda bailes desde os anos 90. “Assim como orquestra e samba deram lugar ao balanço, o rap quis entrar em cena, aí o funk, o trap…”
Nos anos 70 e 80, o movimento ganhou força: equipes de som lotavam quadras e ginásios com gente preta vestida na estica. Muitos casais se formaram nessas pistas, como os pais de Lys Ventura e Renata Prado. “Meu pai era dançarino, galanteador. Minha mãe, uma pretona linda. No começo foi choque, depois dançaram juntos”, conta Lys. “Sou da zona leste de São Paulo, Itaim Paulista. Meus pais se conheceram num baile black, sempre falavam do Scorpions”, diz Renata. Scorpions era uma das equipes da época, ao lado da Zimbabwe e Cascata’s, mas nenhuma com a fama da Chic Show.
Em 1968, Luiz Alberto da Silva, o Luizão, conseguiu espaço para tocar balanço. Logo a Chic Show deixou a Barra Funda e foi para o Palestra Itália. Lá se apresentaram Jorge Benjor, Sandra de Sá, Tim Maia e até James Brown. Eram cerca de 15 mil pessoas por edição.
No documentário sobre a Chic Show, Péricles lembra a influência dos bailes no pagode 90 e Mano Brown recorda quando bonés e tênis eram proibidos. Em 1988, o rapper Kool Moe Dee se apresentou ali em um dos primeiros shows internacionais de rap no Brasil.
Nos anos 90, nasceu na rua Augusta o Class. “As baladas black vinham com passinho. Aí surgiu o gangsta rap e a necessidade da festa pros caras de boné e roupa larga, mal vistos em outros lugares. O rap era mal visto, como o funk depois”, conta Primo Preto. “Nas minhas festas, podia entrar de tênis e boné, tinha DJ e rinha de MCs.”
Na sua memória da época, paulista rejeitava o funk: “Era 95, 96. A gente encerrava o baile de rap às 5h e, pra galera ir embora, colocava funk, era que nem acender as luzes”.
Mas nos anos 2000 a primeira onda chegou. “Sou da primeira geração do funk em São Paulo. Quando comecei a ir a baile, não existia a cultura de baile”, descreve Renata Prado. “Hoje tem Baile do Helipa, Baile do Brega, Baile da 17. Na minha época, era fluxo, fluxo, fluxo. A juventude ocupava as ruas e a polícia dispersava.”
Já Lys avalia que só mais tarde será possível entender a narrativa de baile no funk de SP. “De um lado, o carro de som automotivo rolando madrugada toda. Do outro, a coisa crescendo em formato boiler room. Tem uma festa agora chamada Submundo 808, absurdo, tipo 5 mil pessoas em volta do DJ”, se espanta.
“Entendo que o paredão é a evolução tecnológica da nossa cultura, mas não podemos deixar que higienizem o funk.O jovem da periferia tem direito de estar na rua tanto quanto o da USP ocupa as ruas do centro”, completa Renata.
Seu Osvaldo abriu caminho, e os salões seguem abrigando ritmos e sonhos, bailando ao som das quebradas e das ruas. E, no próximo fim de semana, a tradição se cumprirá mais uma vez, porque… tá tudo dominado.
Quero Ver Você no Baile (Dicas de livros, filmes e sons)
Livros
“1976: O Movimento Black Rio”, Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Octavio
Editora José Olympio
“O Afrofunk e a Ciência do Rebolado”, Taísa Machado
Editora Cobogó
“Funk: A Batida Eletrônica dos Bailes Cariocas que Contagiou o Brasil”, Julia Bezerra e Lucas Reginato
Editora Panda Books
“Sobrevivendo no Inferno”, Racionais Mc’s
Editora Cia das Letras
“Todo DJ Já Sambou”, Claudia Assef
Editora Conrad
Filmes
“A Batalha do Passinho”, Emilio Domingos
Prime Video
“Black Rio, Black Power”, Emlio Domingos
Prime Video
“Uma Breve História sobre o SoundSystem”, Thiago Nascimento
SP Cine Play
“Chic Show”, Emlio Domingos
GloboPlay
“Favela no Ar”, Treze Produções, Rosforth e Stocktown
YouTube
“Maestro Invisível – A História do Primeiro DJ”, Alexandre de Melo
YouTube
“Nosso Sonho – A Trajetória de Claudinho e Buchecha em Forma de Ficção”, Eduardo Albergaria
Netflix, Globoplay
“O Rap pelo Rap”, Pedro Fávero
YouTube
“Terror Mandelão – DJ Bruxo”, Felipe Larozza e GG Albuquerque
Mubi








